Reminiscências de um septuagenário

“No futebol o pior cego é o que só vê a bola.”

Nelson Rodrigues
 
Para anuviar a mente e compartilhar com os leitores algumas experiências pessoais da juventude e demonstrar que os articulistas nem sempre são tão sisudos como parecem ser, resolvi contar um “causo” vivido por mim há 52 anos e do qual me lembrei agora, às vésperas da fazer 73 anos, ocorrido quando assistia pela televisão ao jogo entre Brasil e Itália na final da 9ª copa do mundo de 1970 no Estádio Azteca, no México, e que retrata bem o “espírito daquele tempo”.

O Brasil vinha fazendo uma campanha glamourosa e havia uma expectativa de que poderíamos nos tornar tricampeões mundiais e conquistar em definitivo a Taça Jules Rimet, troféu que caberia a quem alcançasse tal marca.

Estava eu na altura a cursar o primeiro ano da Faculdade de Direito em Fortaleza no final do primeiro semestre letivo e aos 20 anos de idade, quando um amigo de turma ricaço me convidou para assistir ao jogo em sua casa.  

Havia a novidade da transmissão ao vivo e com imagens coloridas pela televisão que ele certamente possuía e que criou em mim a presunção de um cenário perfeito. Tudo se confirmou como eu previra, e até um pouco mais.

A seleção contava com a plenitude do amadurecimento de um Pelé aos 29 anos e
com craques como Tostão, do Cruzeiro, Gerson e Jairzinho do meu botafogo, Rivelino do Corinthians, Carlos Alberto Torres e Clodoaldo do Santos, para citar apenas os seis mais destacados de um time considerado um dos melhores de todas as copas.  

Aluno pobre de Universidade Pública a quem devo a possibilidade de me tornar bacharel em direito e advogado, morando em república estudantil e comendo em restaurante universitário, recém-chegado na cidade grande e vindo do interior, eu era o personagem típico da música que ouvira Belchior cantar ainda na cantina intitulada “Apenas um rapaz latino-americano”.  

De antemão sabia que iria assistir ao jogo num ambiente confortável (bem diferente daquele onde futuros companheiros meus estavam então sendo torturados, mortos ou apenas sobrevivendo), mas somente pude provar (e dimensionar) os confortos tradicionais da alta burguesia nacional naquele ambiente.

Antes do início da partida serviram uns canapés aos convidados e com uísque escocês da melhor qualidade. Eu que vinha tomando apenas cachaça e cerveja pagas pela generosidade de colegas, não me fiz de rogado: comi bem e tomei todas.  

Antes mesmo do jogo começar observei uma especial atenção da dona da casa, mãe do meu colega, em me servir tudo com a presteza e atenção de quem quer agradar especialmente um convidado. Atribui, inicialmente, tal gesto, à decantada hospitalidade cearense, que realmente existe, embora esteja agora menos constante por imposição do individualismo capitalista.

Mas fiquei de certa forma a me perguntar o porquê daquela senhora me apresentar sua bela filha e com ares de cupido. Em verdade a moça não me deu muita bola, mas notei que sua mãe não gostou muito da indiferença dela em relação à minha pessoa.    

Começou o Jogo e a Itália jogava bem, mas o Brasil equilibrava a partida com finalizações do Riva deles e do Riva nosso. Mas logo aos 17 minutos Tostão bateu rápido a lateral (sem esperar pelo gauchão Everaldo) para Rivelino que de canhota e sem olhar despachou de pronto a bola para a área pelo alto (a seleção era maravilhosamente entrosada, como convém aos craques excepcionais) que encontrou Pelé para o cabeceio numa altura que só ele conseguia saltar apesar de sua estatura mediana e diante dos zagueiros altos da Itália.  

Gol do Brasil, e agora Pelé era goleador em duas finais de copa do mundo, feito já ali irreversivelmente consignado na história do futebol de então, como tantos outros recordes que só Pelé conseguiu conquistar e que vão perdurar por muito tempo, ou talvez pela eternidade.  

A esta altura já havia tomado umas três doses do scotch e a alegria de todos era contagiante. Parecia que a vitória estava perto com a Itália um pouco atordoada com o gol.  

Aí veio a ducha de água fria: aos 37 minutos uma bola tocada por Brito chegou ao bom volante Clodoaldo que quis sair jogando de calcanhar para Everaldo, sem vê-lo, e possibilitou que Boninsegna roubasse a bola e diante do desespero de Brito e Félix (que saiu mal do gol) tocou para o gol aberto. Um empate inesperado.  
O Brasil ainda teve um gol de Pelé anulado ao final do primeiro tempo da partida. Consta de depoimento de Carlos Alberto e confirmado por outros jogadores que Pelé rodou a baiana no vestiário, irritado com a pixotada de Clodoaldo, Brito e Felix, e com a anulação do gol dele pelo juiz.

A torcida naquela casa continuava confiante, e eu acho que o uísque generoso e de boa qualidade junto com um almoço regado a camarão e lagostas ajudava a conter a ansiedade.  

As atenções da dona da casa à minha pessoa se somaram às atenções do seu marido que corroborava toda aquela hospitalidade e deferência que eu recebia, mesmo sem achar que eu era merecedor de tantos encômios.  
O Brasil voltou para o segundo tempo mais desenvolto. Logo nos primeiros minutos Carlos Alberto fez tabela com Jairzinho e cruzou para Pelé quase alcançar a bola para marcar o segundo gol. Houve um UHHHH dos presentes.  

Rivelino acertou a trave num chute de direita (que era um pé bom, mas não tanto como a patada atômica de canhota); em outro chute o garoto do parque quase marca, obrigando o goleiro Albertosi a uma grande defesa. O Brasil prometia.  

Aos 20 minutos veio o alívio: Gerson dominou uma sobra de bola de Jairzinho, e de fora da área acertou o gol com sua canhotinha de ouro, e fez o seu primeiro, único e mais importante gol na copa do mundo: Brasil 2 a 1, num resultado que fazia justiça ao melhor jogo do Brasil.
Gerson ergue as mãos para os Céus e enxuga as lágrimas no México, e nós levantamos os copos em Fortaleza num bride à felicidade.  
Com Gérson iluminado e confiante o Brasil se aproveitou do desencontro italiano e cinco minutos após, Gerson faz um lançamento longo e preciso para encontrar a cabeça de Pelé (nenhum dos grandes jogadores do futebol mundial de ontem e de hoje cabeceavam/cabeceiam tão bem saltavam/saltam tão alto quanto Pelé) que diante da marcação italiana apenas tirou dos defensores para achar Jairzinho que entrou com bola e tudo sem humildade em gol (parafraseando a música de Jorge Ben Jor de modo diferente).

Daí pra frente já era carnaval; com três a um no placar e a Itália batida, havia uma mistura de emoção e confirmação presunçosa de superioridade de país Rei do futebol mundial, tudo conjuminado com o que se esboçava ser o falso milagre brasileiro na economia.  

Veio então o gol mais bonito do Brasil na copa, pois começou com cinco dribles geniais de Clodoaldo (que assim se redimia do erro anterior) antes do meio do campo, continuou com Jairzinho pela esquerda se livrando do marcador para servir a Pelé no centro da área que com elegância, calma e a superioridade de Rei do Futebol rolou para um Carlos Alberto que vinha correndo desde a defesa para acertar um chute definitivo de sem pulo.  

Brasil 4 a 1; tricampeão do mundo; e Pelé é caçado para dar sua camisa até pelos jogadores italianos numa reverência majestática.  

Então veio o gran finale que tudo me explicou sobre a razão de tamanha deferência dos donos da casa a um simples estudante universitário convidado.  
Decidimos todos ir para a Beira-Mar numa carreata que se formava, quando a Dona da casa veio até a mim e disse: diga ao seu pai, que eu mando um abraço para ele”.  
Então perguntei: a Senhora conhece o meu pai?  

Ela respondeu com uma pergunta: Você não é filho do General Dalton? (então presidente do Banco de Desenvolvimento do Ceará, indicado pela ditadura, instituição bancária na qual a empresa da família dela tinha relações financeiras).

Respondi, agora já entendendo tudo: “não, Senhora, sou filho de um Sargento da Aeronáutica, herói da segunda guerra mundial, pobre como eu, mas de quem tenho muito orgulho de ser filho.”

Você, caro leitor, precisava ver a cara de desprezo com a qual ela me olhou!!!  

Saí sorrindo, bêbado e feliz da vida para me confraternizar com a multidão eufórica que se abraçava indistintamente pelo simples fato de cada um de nós sermos brasileiros e pertencermos ao país tricampeão mundial de futebol, esporte que nasce nos terrenos baldios dos bairros pobres, e que é facultado aos meninos pobres das periferias brasileiras por sua fácil e barata viabilização.  

A alegria de um torcedor que se abraça com seu vizinho desconhecido é interação humana de pessoas com iguais sentimentos e fenômeno social que nunca facilmente ocorre.  

O futebol brasileiro é do seu povo, e não se confunde com nenhuma apropriação indébita de suas glórias por governos oportunistas.  

Dalton Rosado.    

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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