Permissionário do Mercado São Sebastião, com dois boxes em pontos estratégicos – uma ampla bomboniere no térreo, com frente para a praça de acesso aos pavilhões e de interligação entre eles; e uma sortida loja de produtos de limpeza no 1º andar, a poucos passos dos caixas de autoatendimento bancário –, ele aprendeu a “se virar nos trinta”, como costuma dizer, para vencer os obstáculos em época de crise pandêmica. Antipetista sem traumas, antilulista por decepção e bolsonarista por falta de opção, é como, pelas minhas mais profundas observações e perspicazes apreciações, eu o classifico em termos de política (acho até que nesse caldo há um outro ingrediente a considerar, a contragosto dele certamente, qual seja a formação militar, haja vista ter servido ao Exército por alguns anos, de onde saiu para empreender no comércio; isso ele revelou quando defendeu a esquisita compra de leite condensado, em inexplicável abundância, pela Presidência da República, com a seguinte argumentação, que reputo desprovida de lógica: A compra se destinou a repor os estoques do Ministério do Exército. E eu sei como o oficialato se alimenta bem e fartamente. Eu sei disso desde os áureos tempos em que vesti a verde-oliva. Assim, posso afirmar ser injusta a crítica que se faz ao capitão. Sem comentários.).
Num desses últimos sábados, nem bem larguei o caixa do autoatendimento, o bolso reforçado com alguns “bichos” da hoje pelo desmatamento e pelo fogo perseguida fauna brasileira, ele, em posição de sentinela, de guarda atento do seu comércio, no aguardo de que sua jovem funcionária se desincumbisse do que fora fazer – certamente algo que não lhe era dado delegar a outrem – atraiu-me, de pronto, para uma rápida conversa, algo que – confesso, sem gaguejar nem pestanejar, – eu adoro. E começou assim:
– Bom dia, amigo. Preste atenção. As pessoas costumam dizer que nós, os empresários, ganhamos a vida facilmente. Enganam-se. Só pra você ter uma ideia, ainda não são nem oito horas da manhã, e eu já percorri, a pé e de carro, quase dezoito quilômetros. Você acredita?
– Sou capaz de acreditar, se você me explicar como conseguiu essa proeza, digna de quebra de recorde olímpico. – Estimulei-o a prosseguir.
Ele mostrou no visor do vistoso e modernoso relógio de pulso, de muitos botões, que, além das múltiplas funções, marcava também as horas, minutos e segundos, um pequeno quadrilátero luminoso, em fundo verde-claro e números em bold, de fácil leitura. E a marca ali registrada confirmava o que ele houvera dito.
– Quando… aos sábados, na fria madrugada… vou começar o meu dia de trabalho, costumo acionar este dispositivo de medição cumulativa de espaço percorrido. Como quem abre as lojas e faz as entregas à clientela sou eu…
– Enquanto isso, amigo, nas gavetas do caixa as moedas tilintam… – Disse isso em tom de gozação.
– Pois bem, amigo. Se não fossem os boletos dos fornecedores, os impostos a recolher, os salários a pagar, o arrendamento dos boxes e outras coisinhas mais, né. Sem falar as inevitáveis perdas…
– Que tipo de perda? Pelo visto, você não vende produtos perecíveis.
– A rigor, não. Mas há os calotes… Deixe-me contar um caso do “novo normal”. Uma senhora, de presença agradável, de conversa cativante, esteve na bomboniere alguns dias na semana, pesquisando preços de vários produtos, sob a justificativa de que pretendia botar uma pequena venda para ajudar a neta a pagar o colégio. Ela nos conquistou a todos, e eu cheguei a garantir que cobraria preços bem especiais, como se fornecedor fosse, nesses primeiros momentos. E acrescentei: A sua neta vai ganhar um bom trocado… No final da sexta, ela fez a primeira encomenda, pouco mais de dois mil e quinhentos reais. Prontifiquei-me a fazer a entrega na manhã do sábado, em horário que lhe fosse mais conveniente. E tudo aconteceu conforme combinamos. Quando da entrega, no endereço por ela fornecido, quem lá se encontrava era um senhor que se apresentou como o marido dela. Pediu-me que colocasse as caixas no chão do pequeno alpendre de acesso à casa, onde não havia uma cadeira sequer. E assim fiz. Então, ele me perguntou: Você trouxe a maquineta? Tão logo eu respondi afirmativamente, ele me entregou o cartão, dizendo: No débito, por favor! Assim, eu procedi. Por repetidas vezes, o banco não reconheceu a senha por ele digitada. Ele, sereno, acalmou-me: O senhor não se preocupe. Eu vou ligar pra minha mulher. A invenção é dela… então que ela resolva. Aguarde aí só um instante. Ele entrou. Eu fiquei ali, parado feito estátua. Logo, ele voltou com o celular na mão que me entregou observando: Ela quer falar com o senhor. Ela me pediu desculpas, afirmou estar em compras no Assaí da Bezerra e perguntou-me se eu podia passar por lá e encontrar-me com ela no estacionamento, informando as características do carro dela e como ali localizá-lo. Por confiança e até porque estava no meu trajeto de retorno, aceitei. Despedi-me do marido dela e segui em direção ao Assaí. Confesso que logo depois da primeira conversão, assaltou-me uma forte sensação de que houvera feito uma besteira: abandonara os meus produtos aos pés de um desconhecido. Não encontrei qualquer carro parecido com o por ela descrito, no local por ela indicado, nem nas proximidades. Liguei para o celular dela incontáveis vezes. Ninguém atendia. Retornei ao local de entrega. A casa estava fechada. Na fachada, uma placa com a clássica indicação de oferta de negócio – ALUGA-SE –, abaixo os telefones de contato. Procurei obter alguma informação com os vizinhos. Tratava-se de casa fechada desde o começo da pandemia; quanto à oferta de aluguel, era novidade para eles. Liguei para os números de contato. Para um deles, a ligação não se completava; para o outro, a pessoa que atendeu assegurou nada saber de imóvel a alugar, tampouco das pessoas que me enganaram. Desisti. Lancei aquele valor em perdas irrecuperáveis.
– E o que você sentiu na hora, amigo? – Quis demonstrar a comiseração de quem já experimentou a nefasta ação de marginais que, queiramos ou não, causa-nos, de imediato, a sensação de prosternação, de desânimo.
– De imediato, um misto de raiva e impotência. Dói saber ter sido enganado, ludibriado, traído. Mas eu não me desmastreei, como dizia meu velho pai diante de adversidades.
– Nessas horas, amigo, costumo dizer que mais tem Deus pra me dar que o diabo pra levar.
– Isso. Veja bem o que me aconteceu logo no domingo, no dia seguinte. Nós fazemos as compras em supermercado próximo à nossa casa. E, a cada compra, participávamos com uma quantidade xis de cupons de promoção de aniversário do empreendimento. O sorteio foi realizado na manhã do domingo. O prêmio: uma viagem com acompanhante a Paris, com hotel pago e mais cinco mil euros para consumo. Quer saber quem foi o felizardo?
– Você! – Respondi, percebendo que o interrompera.
– Isso, amigo. Eu fui o sorteado. Gastei mais uns trocados para incluir as minhas duas filhas na farra e “partimos, Paris!”, como elas disseram. Nas perdas, sempre há uma compensação. Umas perceptíveis. Outras não.
E ele me mostrou, na tela do celular, o vídeo do sorteio. O que comprovou a veracidade do fato.
A funcionária dele retornou ao posto de trabalho. Nós nos despedimos, desejando boa semana – um para o outro e vice-versa. E seguimos os nossos caminhos: ele de bom vendedor; eu de bom comprador.
No trajeto para o boxe do Manuel, onde compro as frutas, outros dois idosos caminhavam à minha frente; ao meu lado esquerdo, uma tranquila idosa parecia passear sozinha em campo aberto, o andar suave e sem compromisso, nada nas mãos. Um deles indagou ao outro:
– Você ainda vai passar no Manuel?
– Sim, vou. – O outro respondeu. – Preciso comprar umas laranjas…
– O Manuel mente mais que quenga velha… – O primeiro comentou; o segundo riu; e a idosa me olhou com jeito de aceitação.
E eu não perdi o ensejo:
– Por que a senhora me olha assim…
– Assim, como? – Fez-se de desentendida.
– Ora, com jeito de quem conhece quenga velha mentirosa? – Complementei.
– Porque conheço, ora! – Ela não titubeou.
– Posso saber quem? – Insisti apenas para manter a conversa.
– Eu! Simplesmente eu! Apenas o meu filho, porque agora me sustenta, é que exige de mim comportamento de senhora, de dama, dizendo que eu não tenho mais idade para ficar por aí abrindo as pernas…
Enquanto eu sorria, ela complementava alegremente:
– Coitado! Não sabe ele que ex-quenga é como ex-corno e ex-bicha… não existe.
– É o que dizem, né?
Ela se foi. Eles se foram. Eu passei lá pelo boxe do Manuel, paguei o que devia, peguei o que havia comprado, segui até o carro e vim-me embora.
Tinha sido mais uma manhã de sábado de feira no mercado.