A conversa, que começara titubeante, incerta, ia aos poucos se alongando, firme, consistente, com perceptível naturalidade; parecia que eles se conheciam desde longa data, profundos conhecedores do assunto – os cuidados que todos devemos ter com o corpo e a mente para que usufruamos de uma vida saudável e longeva –, sobre o qual discorriam loquaz, convicta e convincentemente.
Em ambos, as indeléveis marcas do tempo revelavam uma existência terreal de mais de meio século. Eram cinquentões, com certeza. Ela deixava transparecer, no cabelo alisado à chapinha, aparado na altura dos ombros e blasonado com tintura exageradamente vermelho violeta, nos óculos redondos e de lentes grandes e escuras, no vestuário em azul turquesa de frequentadora de academia e no tênis branco afeito a caminhadas, um estilo jovial, descontraído e de personalidade forte. Ele era menos exibido: boné branco de aba curva protegendo a parte alta da cabeça e até quase toda a testa, embora não encobrisse os grisalhos cabelos das laterais, sem óculos e com olhos negros de singeleza ímpar, olhar atento a tudo o que se passava ao seu derredor, barba por fazer, sorriso comedido não atingindo sequer as comissuras da boca, camisa de gola em “v” e cinza claro, bermuda de jeans com largos bolsos nas laterais das pernas e sandálias da cor de grafite da Cartaxo.
De repente, a conversa deixou de ser amigável, cordial, serena. Bastou que a política nela se imiscuísse e a naturalidade se esvaiu paulatinamente, à medida que emergia do discurso de ambos um inesperado e gradual enraivecimento… e aquilo virou discussão. As divergências afloraram. Os até então parceiros de louváveis modos de vida se transmutaram em ferrenhos litigantes em inapropriado campo de batalha. A mulher, defensora incondicional do lulismo, empunhava todas as bandeiras vermelhas de seu ativismo político em prol da defesa do seu ídolo maior, para ela covardemente injustiçado. O homem, antipetista jurado e juramentado, apelava, no extremo da civilidade, para todos os recursos de que dispunha visando desmistificar o legado do partido estelar e, por extensão, do seu mito. Até que ela se propôs a abandonar o embate, com esta observação dirigida ao seu agora desafeto:
– Se o senhor não sabe, pois fique sabendo. Todas as regras humanamente estabelecidas contêm no mínimo uma exceção que as confirma como tal. Passar bem. – Deu de ombros e empurrou o seu carrinho de compras, aproximando-o do pronto atendimento do caixa.
– Concordo, em parte. Até porque essa sua regra, senhora, também tem as suas exceções. – E, então percebendo que ela não mais lhe dispensava a devida atenção e me escolhendo como interlocutor, indagou-me: – O senhor, por acaso, discorda de que haja regras absolutas?
– Não. Não discordo, amigo. Há até as que assentam o seu poder na simplicidade. É o caso, por exemplo, da que impõe, no âmbito da língua portuguesa, que se acentuem todas, sem exceção, as palavras proparoxítonas – lâmina, lâmpada, gôndola, et cetera.
– Há outras, por assim dizer, que se afirmam e se confirmam na sua inflexibilidade ou inexorabilidade: se ainda vivemos, um dia vamos morrer. Algo absoluto, sem a mais ínfima das exceções, não é?
– Pelo menos até que a nanotecnologia, cujos especialistas se debruçam no desenvolvimento de um sistema imunológico biônico que nos tornem amortais, atinja o seu primordial desiderato: vencer a morte, dar à vida humana a tão sonhada imortalidade.
– Isso, a meu estrito ver, é muito difícil, para não dizer impossível. O ser humano teria de antes atingir um nível bem superior… tornar-se um ser superior, um semideus.
– Sim. Teria de haver o banimento dos suicídios, dos acidentes fatais, dos atentados, dos fenômenos naturais de alta letalidade, das guerras. É. Concordo. A paz em plenitude na face da Terra é algo improvável, para não dizer impossível.
– Bom, e se considerarmos o que aconteceu aqui, agora…
– Pois é. Do nada se fez a discórdia. E o pior: por nada e pra nada.
– Eu até já prometi a mim mesmo que não me deixaria mais ser envolvido em situações do gênero. Tenho de reforçar o meu sistema de policiamento pessoal. O que o povo não estará pensando de mim agora?
– Deixe isso pra lá, amigo. O tempo se encarrega de desfazer até conceitos mais arraigados, imagine supostos achismos… O que eu já presenciei e vivenciei em filas… Cheguei até a elaborar uma regra, absoluta, a meu ver.
– Dê-me o prazer de conhecê-la.
– Pois não. A fila consiste em um dos pré-requisitos básicos para a aquisição, pelo brasileiro comum, do conceito de cidadania.
– Concordo. Quanto a vivências em fila, tenho dois casos para lhe contar.
– Ótimo! Que assim seja!
– Vamos ao primeiro. Aqui mesmo, neste supermercado. Enquanto andava entre as gôndolas, procurando produtos e pesquisando preços, percebi que um senhor, de idade muito próxima da minha, fazia a mesma coisa, só que acompanhado de uma criança irrequieta e indócil que reclamava recorrentemente: – Eu quero ir embora! – O avô – depois eu descobri que eram avô e neto – respondia com uma paciência franciscana: – Calma, Tiaguinho! Eu lhe prometo que não vamos demorar muito. – E o neto insistia: – Eu não quero mais ficar aqui! – E o avô não se alterava. – Calma, Tiaguinho, estamos quase indo. – A cena se prolongou por alguns bons minutos. Até que chegamos à fila do caixa. Eu e eles. E o avô, com o mesmo jeito de monge tibetano, arrematou: – Eu não disse, Tiaguinho, já chegamos ao caixa. Calma, portanto. Nós vamos já embora. – Eu não me contive. Do avô me aproximei e lhe fiz o elogio que entendi ser ele merecedor. – Parabéns pela forma como você conduziu a situação imposta pelo seu neto! Não se perturbou em momento algum. Não ameaçou o Tiaguinho… – E ele me interrompeu para me corrigir: – O meu neto se chama Rafael. Tiago sou eu. Eu estava pedindo calma era para mim mesmo.
– Essa é muito boa. – Disse isso em meio a sorrisos. Logo, complementei: – Tenho como regra, sem exceção, de, todas as vezes que saio de casa, dirigir uma prece a Nossa Senhora de Lourdes, imagem no santuário de minha eterna parceira, pedindo para mim proteção e paciência. Calma para enfrentar o que me espera lá fora é o de que mais preciso. Há um outro caso, não é?
– Sim. Numa tarde de sexta, em fim de mês, todas as filas se alongavam e se estendiam pelas ruas entre gôndolas. Era uma grave disputa por espaços, uma situação quase caótica, um burburinho, um verdadeiro teste de paciência. Parecia feira de cidadezinha do interior. À minha frente, uma senhora bem vestida, bem produzida, com jeito de autoridade, não se perturbava. Num dado momento, um jovem senhor, vestido de paletó preto sobre camisa alvíssima e gravata em azul escuro, óculos de lentes cinza no alto da cabeça, avançou para o início da fila. Já no ponto de ser atendido, voltou-se para todos nós, empertigou-se e pretendeu convencer-nos de seu agir inconsequente: – Perdão, senhores e senhoras! Mas eu sou advogado e não posso perder o meu precioso tempo numa fila de supermercado que se arrasta preguiçosamente, enquanto a minha clientela impacientemente por mim me espera. Entendam-me, por favor! – Antes que prosseguisse no discurso ou que qualquer um de nós se manifestasse, a senhora bem vestida retirou da vistosa bolsa que mantinha a tiracolo uma robusta carteira de cédulas e documentos e dela, um cartão dentre muitos; depois encaminhou-se até o jovem advogado e o interpelou: – Doutor, eu sou juíza de direito, conforme comprova este hábil documento. Cumpre-me lembrá-lo de que, se na faculdade não o educaram como deviam, nunca é tarde para aprender. O título acadêmico por nós conquistado, com denodo e perseverança, não nos ascende a uma posição que nos permita ignorar o direito dos outros, fazer tábula rasa dele. Muito pelo contrário. Nós somos os legítimos defensores desse direito. E nesse sentido, no sentido de torná-lo respeitado sempre, em qualquer situação, impende-nos agir. Sempre. Portanto, eu o aconselho a refazer, com o seu carrinho de compras, todo o trajeto percorrido até aqui e ir posicionar-se no lugar que, por direito, legitimamente é seu.
– Deu-lhe uma carteirada…
– Isso. Só que de forma positiva. O antes impetuoso causídico desceu do pedestal, pediu desculpas à Excelência, abandonou o carrinho e as compras ali mesmo (logo recolhido por empregado do supermercado) e, envergonhado, sumiu. E as pessoas da fila aplaudiram a dama do Direito.
Fez-se o silêncio. Chegara a vez de ele dirigir-se ao caixa. Concluído o atendimento e antes que se fosse, ele se voltou para mim e despediu-se:
– Foi um prazer conhecê-lo. Certamente ainda nos encontraremos nas filas da vida.
De pronto, eu o indaguei:
– Como o senhor se chama?
– Camilo.
– Prazer. Eu me chamo Luciano.
De repente, a imagem recuperada na memória, ali adormecida desde um passado longínquo, de umas quatro décadas, fez-me lembrar o advogado e jornalista Venelouis Xavier Pereira, dono do jornal O Estado, em cuja primeira página de uma edição regular, sob título apelativo, tanto pelo tamanho das letras quanto pelo conteúdo da mensagem, assinou matéria que expunha o entrevero, a altercação, a desavença, certamente de natureza creditícia, com o então presidente do Banco do Nordeste, o economista sergipano e funcionário do Banco do Brasil, Camilo Calazans, a quem impingiu o injurioso epíteto de “filho de moita”, valendo-se da frágil, ou melhor, da inválida argumentação de que aquele poderoso homem público, especialista das finanças, carregava apenas um nome de família, o da genitora; e, se omitia ou escondia o da do genitor, era porque certamente ninguém, exceto ela, o sabia. O destemido jornalista pisara no tomate e escorregara feiamente, pois, apesar de ser assim conhecido e de assinar importantes papéis apenas como “Camilo Calazans”, possuía, sim, um nome legitimamente completo: Camilo Calazans de Magalhães. Não sei o que deve ter rendido tal desinteligência.
Naquele mesmo sábado, à tardinha, conversava com amigos na área alpendrada de um barzinho de esquina, em bairro periférico, lá onde a vida verdadeiramente pulsa e onde me encanto ante as possibilidades de fazer inimagináveis recortes do cotidiano, quando um sessentão, afrodescendente, militar reformado, confundiu-me, talvez pelo efeito do álcool até então ingerido, com quem um dia o houvera comandado, cujo nome de guerra era Magalhães. De tanto insistir em ser eu essa personalidade com algum significado em sua existência profissional, disse-lhe, enfaticamente, que não era quem ele achava que eu devia ser, assinalando:
– Sou servidor público aposentado, fui bancário e me chamo Luciano.
Ele sorriu, puxou do bolso a carteira de cédulas e documentos, escolheu a cédula de identidade e salientou:
– Xará, eu também sou Luciano. Ou melhor, sou Francisco Luciano Apolinário. Veja aí, por favor!
Quem agora sorriu fui eu. Também usei de minha cédula de identidade para comprovar mais uma coincidência.
– Xará, e eu sou Francisco Luciano, também.
Seguindo a lógica do jornalista Venelouis, haveria ali um caso de filho de mãe solteira? Provavelmente, sim. Verifiquei, então, que, no documento por ele apresentado, no espaço reservado à filiação, só constava o nome da mãe: Maria dos Anjos Apolinário.