Recortes do cotidiano – cada caso é um caso, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

O toque das doze é bem característico: marca o fim das aulas do dia. Vozes, risos e gritos então se misturam e, como as águas de um multifacetado rio, antes represadas em ambiente escolar, tradicional – apesar dos avanços da modernidade ali bem perceptíveis –, escorrem escadarias abaixo e se estendem pelo pátio, ao nível do térreo. Jovens – adolescentes e pré-adolescentes – invadem graciosamente o espaço com suas alegrias irresponsáveis, suas felicidades incontidas e seus sorrisos flamejantes, formando, por um curto lapso temporal, um buliçoso mar alvianil que vai se escoando, lentamente, através do fluxo nervoso da avenida à frente.

Em meio àquela onda genuinamente humana, o velho educador se surpreende com a pergunta que subitamente lhe faz uma adolescente:

– Tio, que tipo de castigo merece quem pratica bullying contra pessoa acometida de câncer?

Ele ali se encontrava, após atender chamado da coordenação, por dever de ofício, ou melhor, por competência delegada, responsável que era, pedagógica e financeiramente, por um pré-adolescente que, na véspera, se envolvera num caso de fácil solução: ao jogar bola de papel (no meu tempo, era de meia, de pano) com um grupo de colegas, acabou, num despretensioso chute que fez a bola resvalar no corpo de um deles, por acertar a caixinha de chocolate de um garoto, talvez o único espectador da contenda, o que provocou o derramamento de parte do líquido amarronzado na farda (camisa branca) de seu agora desafeto.

A escola não autoriza, mas também não proíbe, a prática desse tipo de passatempo em espaço por eles tomado da área que bem poderia ser chamada de praça de alimentação. A ela não cabe, pois, aplicar qualquer tipo de sanção, por inexistirem regra de comportamento proibitiva específica e, por extensão, qualquer previsão coercitiva capaz de lhe dar validade prática e aplicável ao caso. Embora haja, sim, o risco potencial de a bola de papel causar danos a terceiros, isso não provoca a menor preocupação nos peladeiros de farda. Irresponsabilidade prazerosa.

E tudo se resolveu por consenso de parceiros.

Ante a inesperada indagação da adolescente, o velho educador, com o indicador da mão direita, reposicionou os óculos sobre o nariz, abaixou um pouco a cabeça, aproximando o queixo à parte alta do peito, numa clássica posição de rápida meditação, e, em tom professoral, lecionou:

– Ao aplicador de qualquer sanção, punição, castigo, cumpre considerar, a meu ver, dois aspectos fundamentais: a gravidade da prática censurável e a natureza socioeducativa de sua aplicação. Ou seja, tem de observar a adequada proporcionalidade entre o erro e a pena e visar à consequente recuperação do faltoso pela justa purgação da falta cometida. Vejam vocês: havia um pai que, todas as vezes que se sentia obrigado a dar palmadas em seu filho – quando isso era permitido ou não legalmente proibido –, antes lhe perguntava: você sabe por que está sendo castigado? E esclarecia: isso, meu filho, é pra você não esquecer que esse tipo de erro vai sempre lhe causar algum tipo de dor. Agora o juiz é seu pai; quando crescer, o juiz será a sociedade, serão os outros…

– Pois, tio, a mãe de uma colega nossa, ao saber que a filha zoava com uma coleguinha que perdia cabelos por causa do tratamento contra o câncer, mandou raspar a cabeça dela…

– Vocês já devem ter ouvido falar sobre a lei ou pena do talião… pois é… daí é que se origina o verbo “retaliar” e, por derivação, o substantivo “retaliação”, que exprime a rigorosa reciprocidade do crime e da pena… ou, melhor dizendo, é a regra, absurda para os tempos atuais, do olho por olho, dente por dente. Vocês entenderam?

– Sim. Tio, é o mesmo que dizer “pagar na mesma moeda”?

– Isso. A meu ver, esse tipo de conduta devia ser sempre evitado. Há exagero na aplicação da punição e constrangimento, nada educativo, para o punido. Há demonstração excessiva de poder do educador e o risco de consequências irreparáveis para o perfil psicológico, em plena formação, do educando.

– E como o senhor…?

– Há outras formas de fazer com que o indivíduo perceba o erro cometido e assuma o compromisso de evitar a reincidência. Por exemplo, exigir a produção de um texto, após pesquisa, sobre o tratamento contra o câncer e o sofrimento de quem a ele se submete parece-me ser uma boa solução. Poderia, no caso, levar sua colega a refletir criticamente sobre seu comportamento nada aceitável. Mas não se esqueçam de que, para o bom educador, cada caso é um caso. Devo ir-me. Um abraço, jovens!

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.