“Neste mundo de tantos espantos,
cheio das mágicas de Deus,
O que existe de mais sobrenatural
São os ateus…”
[Mário Quintana, em Baú de espantos. São Paulo: Globo, 2006; pág. 47].
Ele aparenta ter uns dezoito, dezenove anos, nada mais que isso. Moreno, cútis escura, olhos arredondados e íris de exuberante negror, cabelos volumosos e naturalmente pretos, barba espessa e de igual cor. Corpo másculo, atlético, alto e vigoroso, e comportamento cordial, prudente e respeitoso. Sorriso franco, de quem não se excede e a todos acalma, que nada para si arroga, que com nada se afeta, que revela uma brancura contrastante emergindo, talvez, do âmago de uma boa e generosa alma, embora não raras vezes irrequieta. Gestual comedido e sensato que não se plasma de acanhamentos. Firmeza de propósitos, disposição para cotidianos enfrentamentos. Aprendiz de bailarino, como gosta de enfatizar, desfila elegante sobre suas aparentemente frágeis e bem cuidadas sapatilhas, impávido e sem constrangimentos.
Ele sabe compartilhar uma conversa bastante agradável. Demonstra já haver amealhado um bom nível de mundividência, razoável grau de conhecimento de mundo, apesar da idade e da geração, que estranhamente ainda não descobriu que existe vida além do celular. Já conversamos sobre assuntos vários, incluindo política, música e futebol. Cuido logo de me resguardar: – Só não me debruço sobre religião! Sou demasiadamente mundano para refletir ou discutir o que é sacro. – Reconheço nele um louvável senso crítico. A realidade já o incomoda em seus cruciais problemas: – Será que os meus filhos vão ser capazes de bem conviver com todos esses absurdos?! – Eis a indagação mais recorrente em suas duras críticas à atualidade da espécie humana, notadamente a “made in Brazil”.
Não titubeou, em um dos nossos mais recentes encontros, em mostrar um expressivo teor de romantismo ao falar sobre a namorada – quase noiva, segundo ele –, graciosa jovem de olhar castanho-claro, graduanda de Letras, professora de língua inglesa em conceituado colégio da cidade em que nasceu e reside, com nome que lembra vento ou aragem, com geografia que enlaça e fixa raízes em rio histórico, com planta urbana que ainda preserva o casario de traços marcantes e reveladores de um passado culturalmente rico. Apesar da distância, não mede esforços para, sempre que é possível, estar com a jovem mulher amada, que tanto o estimula a aprimorar-se em tudo o que gosta de fazer. – Ela é hoje a razão maior da minha vida… e que os ciúmes maternos não desconfiem disso. – Eis a declaração de quem se revela apaixonado.
– Professor! [É assim – respeitoso e formal – que ele se dirige a mim, talvez porque sempre me encontre na agradável companhia de um Thomas Mann (A montanha mágica), de um Mário Quintana (Porta giratória), de um Michel de Montaigne (Ensaios), de um Chico Buarque (Budapeste), de um Domenico de Masi (A emoção e a regra), de um Rubem Alves (O velho que acordou menino), de um João Guimarães Rosa (Sagarana), de um Roberto Drummond (O cheiro de Deus), de um Irvin D. Yalom (O carrasco do amor), de um William Shakespeare (Romeu e Julieta, Hamlet e outros)]. – Professor, eu não sei escrever poemas… mas sei, sim, praticar poesia. E muito especial é a musa em que me inspiro… por quem suspiro e com quem até transpiro. – Enquanto desfila a sua inusual imodéstia, me mostra a tela do celular com foto da amada. Obrigo-me a concordar com ele. Filosofo, então: o homem apaixonado traz a alma impregnada de poesia farta em rimas de enlevo e em cadências de desvelo.
Em dois momentos, confesso que vi brilho maior nos olhos negros do “aprendiz de bailarino”. Um deles, quando emocionado narrou a sua estreia no Teatro José de Alencar, em evento promovido pelo colégio onde estuda. O arremate da narrativa, em que o protagonista saboreia, mais uma vez, o divinal néctar da vitória bem particular, provocou arrepios em mim. Disse-me ele: – Professor, a plateia me aplaudiu longamente e de pé, tão logo concluí a minha apresentação individual e performática. Senti-me como se um deus negro fosse. – O outro, quando esperançoso anunciou que estaria, ainda no curso deste ano, em Joinville, Santa Catarina, onde participaria da seleção anual para aluno bolsista do Instituto Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, com considerável possibilidade de aproveitamento por méritos. Mais um incentivo da namorada ou já noiva. Mais um apoio incondicional da família, em especial de sua mãe que já ultimava os preparativos para a viagem do filho que – nisso ela crê piamente – será mais um brasileiro a fulgurar em consagrados palcos pelo mundo afora, com o reconhecido padrão de excelência do Bolshoi.
Ontem, surpreendeu-me em minha prazerosa revisitação a Carlos Heitor Cony (Quase memória, romance em que o autor “mapeia minuciosamente a relação pai e filho”, e o faz de forma comovente, com “uma lição de afeto póstumo, de delicadeza, de simpatia”). Ao aproximar-se, lançou bruscamente ao chão a mochila e o par de tênis. Percebi, de imediato, sua afobação, sua irresignação. Apesar da revolta, a fala se revestiu de desânimo, de desalento, de desencanto:
– Professor, eu vou desistir. Juro que vou desistir.
– Do que você vai desistir, jovem?! Logo você que há demonstrado disposição…
– Absurdo dos absurdos. O ser humano não se cansa de dar provas de que não tem mais o menor respeito por seu semelhante.
– O que aconteceu com você, amigo? Já não o estou reconhecendo. Por favor, abra o seu coração. Jogue fora esse peso que tanto o incomoda. Alivie-se. Acalme-se.
– Alguém, professor, não sei bem quem, entendeu, não sei bem por quê, de me agredir, de me intimidar, em plena via pública. Lançou sobre mim, propositadamente, jatos de um gás lacrimejante que causaram forte ardência nos olhos e nariz, além de travamento na garganta… me sufocaram… me desnortearam por alguns instantes.
Agora já um pouco calmo, contou-me, com detalhes, a constrangedora situação que vivenciara. Usuário de ciclovias, fazia de bicicleta o usual trajeto, desde a sua residência até o ginásio, onde ora estávamos. Ali, bem na alça de acesso da Expedicionários para a Treze de Maio, nas proximidades da entrada do 23º Batalhão de Caçadores – o 23 BC –, sentiu a aproximação de um veículo em velocidade reduzida, de cujo interior alguém lançou os jatos de gás em direção ao seu rosto. Com bastante esforço, conseguiu adentrar a área frontal do quartel, onde procurou e encontrou ajuda. De lá só lhe permitiram sair após apresentar sinais efetivos de recuperação.
– Professor, se se tratasse de arma de fogo, é provável que tivessem atirado em mim.
– Sim, amigo. É bem possível que sim. A intolerância chega a ganhar contornos circunstanciais tão absurdos que pode provocar atos de grave insanidade, de consequências extremamente danosas.
– Pois bem. – Disse isso já se levantando, recolhendo os seus pertences e dispondo-se a tudo recomeçar. – Se vivo ainda estou, professor, só me cabe prosseguir, não interromper o curso normal da minha valiosa vida. Valeu.
– E como valeu… só valeu. Cuide-se, jovem!
Moreno, cútis escura, e aprendiz de bailarino. Eis uma combinação mais que perfeita para servir de alvo a absurdos atos de inumana intolerância.