Racismo e juventude: colunas de um projeto religioso

Lembro-me do dia em que fui “levantado a obreiro”, estava limpando o salão no qual ainda acontecem as reuniões da Igreja Universal do Reino de Deus, numa regional (igreja que é responsável por outras), de um bairro na periferia de Fortaleza. O Pastor Luiz me chamou e me fez três perguntas: se era batizado com o Espírito Santo, se era batizado nas águas e se tinha vontade de “ganhar almas para Jesus”. Segundo a igreja quem conhece Jesus tem sede de ganhar almas para ele, de acordo com esta lógica expansionista e apegados ao versículo de Marcos 16:15: “Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” . A igreja de Edir Macedo segue apresentando números que impressionam, tudo para salvar vidas?!

De acordo com Gilberto Nascimento, escritor de “o Reino”, a IURD está presente em mais de 95 países, são 320 bispos, 10 mil templos, 14 mil pastores e, segundo dados de 2010 do censo levantado pelo IBGE, são mais 1,8 milhões de fiéis no Brasil. Muitos dos colegas que ali conheci eram jovens na minha faixa de idade, uns 16 – 18 anos. Porém,  para ingressar num posto de prestígio como o de um obreiro tivemos que “entregar” boa parte do nosso tempo, ou melhor, das “nossas juventudes” para esta obra. 

Em reuniões de jovens no “Templo Maior” – Centro de Fortaleza, o então Pastor Ronaldo Martins, responsável estadual do grupo, nos estimulava a fazer um juramento com Deus, de entregar as nossas vidas, nossas juventudes sob o altar. Aparentemente parece não ser má ideia, o altar representa a mão de Deus, logo, estando sob o altar,  estaria sob a mão de Deus. O problema é o assédio a estes jovens para que ano após ano se consolide um projeto de poder que emprega força de trabalho totalmente voluntária.

Morávamos na igreja, num alojamento improvisado de difícil acesso no fôrro do auditório que chamávamos de “4° andar”. Minha empolgação pela obra me fez perder alguns anos de estudo.  Exemplos na IURD não faltavam, era comum encontrar muitos “homens de Deus” não letrados assim como o Bp. Romualdo Panceiro que teria estudado apenas até a 5ª série, segundo histórias internas da época, e nem por isso deixara de ser menos “ungido”. Imaturo, não percebia os riscos que a falta de escolaridade poderia me trazer no futuro.

 O próprio Romualdo recentemente anunciou sua saída definitiva da Universal e a criação de sua própria denominação – a Igreja das Nações do Reino de Deus. Consta ainda que há alguns anos o mesmo matinha-se isolado e totalmente afastado das atividades missionarias, após desentender-se com Macedo,  que teria, algumas vezes em público, lhe confirmado como sucessor.

 Por vezes fui chamado para ser IBURD, uma espécie de obreiro que inicia o treinamento para tornar-se pastor, muitos garotos entram nessa ainda muito imaturos, a conclusão dos estudos é um exemplo. Após anos, correm o risco de serem postos para fora por algum erro e acabam saindo sem perspectiva de profissão, aliás essa parece ser uma pista para se entender a criação de tantas igrejas neopentecostais com a cara da Universal, muitos nunca fizeram outra atividade profissional. A maioria destes continuam frequentando a igreja, mas há uma ordem de Macedo de que uma vez fora da obra aquele pastor não poderá voltar. 

Nesse período me dedicava integralmente, além de passar o dia na igreja, também ajudava nas tarefas delegadas por pastores auxiliares e obreiros. Outra passagem bíblica bastante acessada, principalmente para convencer os membros da igreja a levarem seus filhos nos cultos, é o de Provérbios 22:6: “Ensina a criança no Caminho em que deve andar, e mesmo quando for idoso não se desviará dele!”

No decorrer dos anos 1990 minha mãe por muito tempo foi impedida de me levar aos cultos, pois passara um período frequentando a igreja universal escondida de meu pai.  Nesse período ele trabalhara em uma indústria têxtil e se viu alvo de piadas desde que começara a rivalidade entre igreja Universal e Católica, esta última tendo mobilizado a esfera pública, apontando uma sequência de denúncias contra Macedo. O clima era desfavorável à Igreja Universal, já que eram minoria diante da influência dos católicos e de sua esmagadora quantidade no país — acirramento que se agravou com o episódio da santa quebrada pelo ex. pastor Renato Suhett. 

Mal sabia que vivíamos ares de “guerra santa” à brasileira. Tendo captado muito bem o preconceito racial e religioso estimulado por décadas de colonização forçada a indígenas e negros escravizados de diferentes partes do continente africano e enraizados na atmosfera das relações sociais brasileira; os bispos aconselhavam (como ainda o fazem) os fiéis “contra as forças do mal”, que são problemas de qualquer ordem espiritualizados pela sede de encontrar um culpado. Havia, pois, um predomínio hierárquico religioso do catolicismo que permitia uma certa fluidez dos sujeitos entre as religiões, por estes serem frequentantes de denominações mais populares ou menores, portanto reuniam-se todas elas em torno do catolicismo.

Desta forma, nosso país presenciou um novo processo com o neo-pentecostalismo, o de 1 – exclusividade religiosa: os fiéis precisavam agora ser membros exclusivos destas denominações pentecostais, 2 – de diferenciação: parte de uma visão etnocêntrica em que sempre um olhar, uma concepção sobre o mundo, religião, cultura etc. sobressai em relação a outra.  Podendo ser exemplificado com o livro de Edir Macedo –  Orixás, Caboclos e Guias, deuses ou demônios? – em que o bispo distorce a representação e os significados de elementos da Umbanda e do Candomblé, os Orixás, pretos velhos e demais figuras que compõem a realidade do país são ainda mais estigmatizados e demonizados com este processo.

 Objetivamente gostaria de destacar duas questões nesta experiência que me marca enquanto sujeito — bem como é marca deste “modus operandi” da Universal:


1 – é fato inquestionável que a obra de Macedo não seria a mesma se não tivesse à disposição a quantidade de adolescentes, os quais trabalham pesado nas atividades da igreja —lamentável pensar que muitos desses substituem a escola, o estudo e o conhecimento pelos dias passados na igreja, absorvendo na prática como deve ser o trabalho missionário da IURD. 

Um episódio que ilustra a aversão do líder religioso pelo conhecimento pode ser percebido quando em 1984 ele acabara com a faculdade que formaria os pastores de sua igreja, sete meses após sua criação. O motivo, “vamos ficar mantendo por uns dois ou três anos um monte de vagabundos que podiam estar trabalhando, (…) quem quiser aprender a ser pastor vai aprender com o pastor do seu templo, e vai aprender igual”, e ainda argumentou que à igreja interessava “pastor com boa conversa, que saiba argumentar, convencer as pessoas, comandar uma boa sessão de milagres e exorcismo e fazer coleta”. Estudar grego, hebraico ou outras matérias como teologia sistemática “é tudo besteira, não leva a nada”.

2 – A Universal inaugurou novas formas de ataque contra as religiões de matrizes africanas. Num programa da Rádio Metropolitana, Macedo viu sua “chance de ouro”, pois iniciava sempre a programação após uma mãe de santo, tirando proveito da situação, em abril de 1978, comparava a figura de Jesus e seu poder aos Orixás, pretos velhos, caboclos e guias que seguia sempre com uma vitória de Jesus. Hoje, consciente destes traços racistas que marcam nossas subjetividades observo como foi nociva esta experiência, pois nos coloca em perspectiva de guerra a outras religiões: católicos, espiritas, evangélicos (sobretudo pentecostais), e principalmente umbandistas e candomblecistas são alvo desta demonização.

Natanael Silva

Natanael Pereira da Silva é Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará, ex. Nascido e criado em ambiente evangélico atualmente se dedica a compreender a realidade social brasileira a partir das Igrejas evangélicas e suas relações com a política.