Li Hermann Hesse na adolescência. Desde então, uma passagem ficou num compartimento da mente, que revisito de vez em quando: “Quem quiser nascer precisa destruir um mundo.” Portanto, decreto minha morte para amanhã.
Não sei se há um momento adequado para a morte, mas a maturidade é, certamente, o momento ideal para o renascimento. Ali, aprendemos a lidar com a substância fugidia do tempo. Passamos a habitar os espaços que não conhecemos na juventude: nossas próprias esquinas, por onde nos desviamos e nos encontramos e voltamos a nos desviar, como numa brincadeira de esconde-esconde.
Quero morrer amanhã. Dito assim, o título dessa crônica assusta, porque temos uma relação de pudores e conflitos com a morte. Não sabemos lidar com essa entidade feminina e poderosa, que nos subjuga a todos.
Woody Allen, com um sarcasmo peculiar, idealizou uma figura masculina para a morte, com o seu “You will meet a tall dark stranger”, algo que se pode entender como o dia do grande encontro, em que você vai conhecer o homem de seus sonhos. Não se iludam, meninas, o homem dos sonhos aqui, é uma metáfora sutil que nos prepara para o último dos encontros, quando olhamos em retrospectiva e nos deparamos, cômico ou tragicamente, com episódios do passado que nos roubaram tanta energia. Momento em que se apaga a última fagulha. Game over.
Aprendi com minhas mortes diárias a não temer a morte definitiva. As perdas nos fortalecem e desenvolvem em nós um libertador sentimento de desapego. Enxergo possibilidades dentro da perda, um crescimento sempre. Foi assim aos 13, quando perdi meu pai – a primeira delas – e tive que encontrar uma maturidade que eu não tinha, para lidar com esse vácuo em minha vida. Depois perdi mãe, afetos, certezas, oportunidades, casa… A cada perda, sinto-me gigante.
Hoje, mulher madura que sou ou deveria, permito-me qualquer coisa, até mesmo ser imatura ou irresponsável, se me ocorrer ser, porque já cumpri minha cota de seriedade com a vida e meu único compromisso é com a honestidade de meus sentimentos.
O livro era Demian e não voltei a me encontrar com Hermann Hesse. A frase que recortei me ajudou no entendimento de algumas de minhas vivências, não como uma tragédia particular, mas como mortes. Sei o quanto essa palavra assusta e tenho meus respeitos por ela. Substantivo feminino singular que prefiro usar no plural, morte que se acompanha de outras mortes para renascer lá na frente.
A cada fase da vida, reagimos de um modo diferente às mortes cotidianas; em algum momento, passamos a ter intimidade com o frio tecido da morte, a esperá-la como a visita mais certa. Tenho pena de quem nunca morreu, nem enlouqueceu, nem foi ao chão; porque esse, nunca nasceu; vidinha sem graça! Não, caro leitor e leitora, isso não é um tributo à morte. É antes, um tributo ao nascimento.
Desses extremos nascem os poetas, os músicos, os sensíveis, os sublimes, os destemidos, os operários da vida e da arte; os pequenos se fazem gigantes.
Minha última morte ainda vibra, porque foi logo ali, ontem. É assim mesmo contraditório o sentimento: a morte que vibra. Foi a morte da minha casa e de seus significantes dentro de mim. Essa morte me permite nascer todos os dias com o propósito de reconquistá-la. Não à casa, enquanto corpo físico, mas ao seu simbolismo. Algo como uma expressão da dignidade feminina que foi, disfarçadamente, arrancada de mim.
A casa tem uma relação afetiva imediata com o feminino e com a maternidade: lugar sagrado onde a mãe cria os filhos que gera no útero. Casa, mulher, mãe: substantivos que me fazem crer no futuro da humanidade, a partir do feminino. Homens, não subestimem a força das mulheres, porque assim, vocês se tornam pequenos diante de nós.
Falando em maternidade, o primeiro rompimento que se dá é com o útero da mãe. Para mim, esse foi apenas o começo. A partir daí, rompi expectativas do passado, realidades do presente, probabilidades não otimistas de futuro: símbolos dos três tempos que regem o universo. Rompi convenções, estruturas herméticas que me subjugavam a um papel secundário que não era o meu lugar na terra. Rompi com as dificuldades e as hipocrisias de meu contexto social e enfrentei as mortes diárias, para renascer também todos os dias. Agradeço pelos caminhos que eu percorri: o que eu extraí de cada dor e alegria e o que deixei por lá.
Então, volto a reafirmar minha convicção: quero morrer amanhã. Depois eu nasço.
©️Íris Cavalcante