Quando o Brasil foi dividido em fatias horizontais de terra que começavam no mar e avançavam rumo ao sertão, as famosas Capitanias Hereditárias, nos anos 1.500, o Ceará estava contido na esfera de poder de Pernambuco. E Pernambuco foi uma das capitanias que mais prosperou, junto com São Paulo. E o Ceará foi uma das que pouco prosperou, e pobre foi ficando. De certa forma, acostumou-se e especializou-se em ser pobre e dependente.
Passaram-se séculos até que essa situação de dependência fosse modificada. Aí pelo ano de 1799, por decisão tomada em Portugal, o Ceará foi formalmente reconhecido com personalidade própria. Sim, formalmente, porque, como muita informação histórica indica, de fato pouco ou nada mudou. Pelo menos não em relação à pobreza e à dependência. Pernambuco continuou a influenciar politicamente o destino do Ceará. Mais do que isso, a economia local era, pelo menos indiretamente, orientada pelo vizinho – empresários cearenses vendiam a Pernambuco ou através de Pernambuco, e se abasteciam em Pernambuco, preponderantemente. Airton de Farias, no seu História do Ceará, bem registra esta circunstância.
No primeiro quarto do século XX, a influência havia diminuído, mas permanecia. Aí pelo ano de 1912, os vizinhos, através do seu líder político general Dantas Barreto (ex-ministro da Guerra), presidente da Província de Pernambuco, trabalharam e ajudaram a emplacar o nome do Coronel Franco Rabelo para suceder o oligarca Nogueira Acioli na função de presidente da Província do Ceará. Aroldo Mota dá como certo que o nome do coronel foi “inspirado” aos líderes cearenses pelo general pernambucano.
Na sequência de seus seis livros que contam a História Política do Ceará, cobrindo o período de 1889 a 1991, Aroldo Mota, mais de uma vez, refere-se à fragilidade da elite dirigente do estado, e não apenas por causa da influência do estado vizinho, mas também pela prática política, pela gestão da máquina e do dinheiro público e pela submissão dos interesses públicos maiores aos interesses particulares menores. E pela quase completa sujeição (sem negociação, sequer) ao Rio de Janeiro, então centro de poder do governo federal (Brasília entra no mapa em 1961).
A formação e a consolidação de uma elite demanda tempo, pede que avance como uma tradição. Membros da elite que efetivamente manda costumam ter, além de dinheiro e um sobrenome, reconhecidas liderança, visão e articulação. E, mesmo tendo tudo isso, são discretos e atuam nos bastidores. Não agem aberta e diretamente, apenas direcionam, interferem, influenciam. Eventualmente, ocupam posições na administração pública (ou mandato) e algum tipo de controle sobre meios de comunicação.
Os intelectuais, os trabalhadores, os profissionais liberais, os artistas, os gestores públicos, todos têm seu valor e sua importância, e são, numa dimensão mais restrita, também elites(no plural). Entretanto, não sentam à grande mesa central para fazer as escolhas e tomar a decisão estratégica. Mais servem do que ditam, é a regra.
Se aceita a tese de que a elite do Ceará tem uma fragilidade importante, estes eventos que se desdobraram em quase quatro séculos colaboraram para que ela fosse (ou seja) literalmente atrasada.
Então, temos uma elite? vamos admitir que sim.
Nos anos 1980, o jornalista e professor Auto Filho, em texto publicado no jornal O Povo, qualifica a elite cearense como “arrogante, incivilizada e inculta“.
Nos mesmos anos 1980, eis o que disse o hoje senador Tasso Jereissati: “…clientelismo político, malversação criminosa dos recursos públicos, desperdiçados em obras suntuosas e desnecessárias, empreguismo, esbanjamento do dinheiro do povo com uma casta …essa política nefasta não tem como sobreviver num regime democrático, pois, para se manter no poder, eles têm que se valer da miséria da população, para que ela, ignorante e desamparada, não desenvolva uma consciência clara de seus direitos e de seus interesses…“. Não, não é trecho de um discurso feito no calor brabo de um comício no sertão, em plena campanha. Foi dito no ar condicionado da Assembleia Legislativa, na solenidade de posse, muito depois da dura disputa por voto.
Texto publicado em novembro de 2021, de autoria do escritor Dimas Macedo, cita um evento do domínio público que corrobora o que disseram o senador e o professor. Leia: “… Tanto Aldeota quanto Sua Majestade, o Juiz tornaram-se no Ceará das décadas de 1960 a 1980 romances de leitura quase proibida, tendo parte de seus exemplares sido recolhida, ou adquirida por figuras da sociedade e da política cearenses para incineração ou destruição, numa tentativa de apagar as marcas da fraude e da corrupção que o romancista havia revelado. Jornalista corajoso e sempre muito independente, Jáder de Carvalho nunca conseguiu apagar os vulcões que brotaram da sua alma…”. Queima de livros dispensa comentário.
Aceite-se como fato que o Ceará fez e continua a fazer escolhas. E aqui, como em todo lugar, os caminhos centrais e as direções prioritárias são definidos por essa elite (no singular) que comanda (no sentido de interferir, influenciar, direcionar) os três poderes formais e a imprensa, para produzir desenvolvimento e subdesenvolvimento. E assim empalma o poder de definir a distribuição da riqueza (e da pobreza) e a qualidade de vida (ou a falta dela), enfim, os níveis de desigualdade.
Ou, opcionalmente, aceite-se como fato que o Ceará não tem uma elite. Melhor?
Ter ou não ter, eis a questão.
PS.: Rápida consulta a um prosaico dicionário on line.
elite – substantivo feminino
– o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, esp. em um grupo social.
– minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social.