PRÉ-LEITURA DO LIVRO “O FILHO DE MIL HOMENS”, DE VALTER HUGO MÃE

O AUTOR

Valter Hugo Lemos nasceu em 25 de setembro de 1971, em Angola, mas foi criado em Portugal. Ele adota o nome literário Valter Hugo Mãe. É um dos mais importantes escritores da literatura contemporânea portuguesa. Sua escrita é marcada por um estilo poético e inovador, frequentemente misturando prosa e lirismo. Ele se destaca por tratar de temas existenciais, como a solidão, a morte, as relações humanas, a busca por sentido e a fragilidade da condição humana. Sua linguagem é desafiadora, ao mesmo tempo acessível e emocionalmente profunda.

É conhecido por seu uso criativo da linguagem, às vezes desrespeitando convenções ortográficas e estilísticas para trazer maior proximidade emocional. Suas histórias frequentemente destacam personagens à margem da sociedade.

O autor já recebeu vários prêmios literários, incluindo o Prêmio Literário José Saramago em 2007, que solidificou sua relevância na literatura lusófona. O próprio José Saramago considerava Valter Hugo Mãe “um tsunami” na literatura portuguesa, reconhecendo sua originalidade.

A PUBLICAÇÃO

 

O livro “O filho de mil homens”, de autoria de Valter Hugo Mãe, foi lançado em 2016, pela editora Biblioteca Azul, com 220 páginas. Prefácio de Alberto Manguel

 

 CIRCUNSTÂNCIAS

 

O livro foi escrito num contexto de reflexão sobre a solidão, o desejo de pertencimento e a paternidade. O autor explora questões sensíveis, como a necessidade de ser amado e de formar laços que transcendem o vínculo biológico. O romance reflete as angústias contemporâneas em torno de identidade e aceitação, ao mesmo tempo em que trata temas universais.

 

Escrito quando as noções de família e relações interpessoais estão sendo ressignificadas, o livro aborda fragilidades e forças que emergem do convívio humano. Valter Hugo Mãe imprime à obra seu estilo único, criando um enredo onde personagens marginalizados e marcados por cicatrizes emocionais encontram maneiras de se reconstruir por meio do amor e da empatia.

 

IMPORTÂNCIA DO LIVRO

 

“O Filho de Mil Homens” se destaca por abordar de forma delicada temas como solidão, pertencimento e novas formas de família. O livro reflete a busca por aceitação e afeto, demonstrando que os laços afetivos podem ser mais fortes do que os biológicos. A obra oferece uma visão empática das relações humanas, questionando as expectativas sociais e as concepções tradicionais de família e paternidade. Com personagens vulneráveis e uma narrativa lírica, o livro nos convida a pensar sobre a necessidade de amor e conexão em um mundo cada vez mais fragmentado.

 

O LIVRO

 

A obra é uma narrativa profundamente humana que explora a solidão e o desejo de pertencimento através de personagens vulneráveis. O protagonista, Crisóstomo, é um pescador de 40 anos que, buscando um sentido maior para sua vida, sonha em ser pai. Sua trajetória se entrelaça com a de outros personagens solitários: Camilo, um jovem órfão que se torna o filho que ele sempre desejou; Isaura, uma mulher que vive um casamento sem amor; e Matilde, que enfrenta o preconceito por ter um filho homossexual.

 

Valter Hugo Mãe desconstrói a ideia de família tradicional, mostrando que os laços mais fundos são baseados no afeto e na aceitação, e não apenas em vínculos biológicos. A narrativa oferece um retrato tocante das lutas emocionais de cada personagem e de como, ao se encontrarem, descobrem novas formas de amor e reconstrução pessoal. Com sua linguagem viva, a obra convida à reflexão sobre o poder transformador das relações humanas e da empatia, revelando que a verdadeira família é formada pelo acolhimento e pelo cuidado mútuo.

 

CURTAS

 

– “A companhia de verdade, achava ele, era aquela que não tinha porque ir embora e, e se fosse, ir embora significaria ficar ali, junto.”

– “Aconteceu assim porque o Crisóstomo assumiu a tristeza para reclamar a Esperança.”

– “… E pensou por que o seu filho era um gênio. E assim pensaria de qualquer maneira, uma vez que amar fazia dessas grandezas. Amar era feito para ser uma demasia e uma maravilha.”

– “Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.”

– “Entre si, as vizinhas comentavam que triste seria a vida sem o amor, e o amor daquele povo não era romântico, era só ter um homem, deitar-se com um homem, sentir como um homem vasculha o interior de uma mulher.”

– “Que ridícula soava a ideia de uma triste anã querer amar se o amor era um sentimento raro já para as pessoas normais. Para as pessoas.”

– “Estava grávida, sim, mas não era coisa do amor, antes de uma rotina de solidão que enfraquecia a resistência e intensificava as vontades.”

 

BONS MOMENTOS

 

“Uma vizinha que lhe pôs um pão fresco na boca, lhe abriu a água da banheira e lhe  disse que o sol estava alto e era como um patrão. Está a ver-te, dizia ela. O Sol era que mandava, a significar a vida que se punha a continuar para além até das grandes tristezas.

 

“Ofereceu-lhe um anel com uma Pedra Azul muito brilhante. Era uma água-marinha, dissera-lhe o caro vendedor. Uma condensação de todo o mar, como se todo mar fosse sumariado eterna intensidade daquela matéria. A Isaura colocou-o no dedo e afundou. Perdeu-se facilmente na profundidade dos sentimentos.”

 

“O Antonino disse à Isaura que amasse. Que amasse, pelos dois, o pescador, que dele cuidasse como quem cuidava do importante destino do mundo. O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cada pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra. E amar uma pessoa é o destino do mundo.”

 

“Via agora como parecia elementar àquele homem que desabafasse aqueles segredos, que livrasse a boca das palavras, porque ao menos as palavras partiram e partiu de dentro do peito, aliviando o peito, fazendo-o pesar cada vez menos, como num certo milagre da confissão.”

 

“Estavam à mesa carregados de passado, mas alguém fora capaz de tornar o Presente num momento intenso que nenhum dos convidados quereria perder. Naquele instante, nenhum dos convidados quereria ser outra pessoa. O Crisóstomo pensava nisso, em como acontece a qualquer um, um certo instante, não querer trocar de lugar com rei ou rainha nenhuns de Reino nenhum do planeta.”

Monica Moreira da Rocha

Economista, servidora pública aposentada, ex-auditora da Receita Federal do Brasil.