O AUTOR
Francisco Azevedo é escritor (poeta, romancista, dramaturgo, roteirista) nascido em 1951, no Rio de Janeiro.
A PUBLICAÇÃO
O livro “O Arroz de Palma”, de autoria de Francisco Azevedo, foi lançado em 2008, com 352 páginas, pela editora Record. No exterior já foi editado em 13 idiomas.
CIRCUNSTÂNCIAS
Um punhado de arroz paira sobre o destino de uma família por causa de certo poder de influir e acertar desvios de trajetória. As mulheres também ancoram os acontecimentos e pelo menos duas delas exercem uma liderança singular. Para completar a estrutura do romance, uma família em tudo comum, que a boa literatura não deixa ser banal.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
Romance de estreia de Francisco Azevedo, O Arroz de Palma é sucesso de venda e de crítica, dentro e fora do Brasil. Os números das tiragens caminham para cem mil exemplares.
O texto tem um alto nível de qualidade. A excelência começa na simplicidade. E segue num ritmo especial, lento, mas firme como a correnteza de um rio tão caudaloso quanto discreto.
O LIVRO
A esposa, o marido e uma irmã deste deixam Portugal e aportam no Rio de Janeiro em 1908. A história de três gerações desta família até 2008 é narrada por um de seus membros aos 88 anos. O arroz que foi jogado sobre os noivos ainda em Portugal, ao casarem, e trazido na viagem, parece produzir efeitos especiais sobre a família por todo esse tempo.
Uma história de família. Uma família comum, segundo o autor, meio sagrada, meio destrambelhada. Uma viagem no tempo, um passeio pelos costumes que não param de mudar, como o divórcio, a velhice e a homossexualidade, por exemplo. Quando relata as mortes, numa trama cheia de vida, o autor o faz com notável suavidade. Aliás, esta palavra se aplica muito bem ao livro inteiro.
CURTAS
“Família é prato delicado e difícil de preparar.
“E ele a amou por isso e a admirou por isso e a odiou por isso.
“Tento entender minha aflição. Sim, porque só procuramos entender o que é ruim. O que é bom simplesmente vivemos sem mistérios.
“Pretendo apenas cuidar do meu jardim. Depois, será a vez de o mato tomar conta. Mas tudo a seu tempo.
“O espelho já não me intimida faz tempo. Eu já fui tantos!
“Silêncio. Silêncio porque é decisão sem volta. Silêncio porque, com tanto a dizer, o melhor é dizer coisa nenhuma. Silêncio porque eu ali sou ausência antecipada.
“Sempre preferi me deslocar assim, mais perto do mato e da terra. Talvez para me compensar os voos da alma.
BONS MOMENTOS
“Não foi nada fácil a vinda de meus pais para o Brasil. Eram jovens, inexperientes. Sonhos, força no corpo, alguma instrução e nenhum dinheiro. Apesar da pouca diferença de idade, “Tia“ cuidava deles como mãe extremosa. Os três trabalhavam duro e economizavam em tudo o que podiam. Fiquei sabendo, por exemplo, que uma vez, ainda no Rio de Janeiro, mamãe viu passar por ela um rapazote vendendo maçãs — sorridente, orgulhoso do produto que exibia. O cesto carregado e o perfume de fruta fresca lhe lembraram Portugal.
“Velho sente saudade de mãe e de pai. Tudo faz tanto tempo! Velho quer colo, quer colher vindo de longe com motor de aviãozinho, quer — banho tomado — que o ponham na cama, o aconcheguem com lençol limpo e travesseiro macio. Uma história conhecida, uma cantiga de ninar, um beijo de boa noite. A porta do quarto um pouquinho aberta, com a luz do corredor acesa — o ponto de referência é sempre bom. Velho sente falta de instância superior. Quem o julgará com isenção e sabedoria? Quem melhor do que ele, saberá, imparcial, examinar o mérito da questão? Velho é criança de fôlego diferente.
“Em algumas situações, as palmadas são complemento extremamente eficaz, o último argumento de um pai ou de uma mãe á beira da loucura. Mas bunda de criança é sábia. Se a palmada é justa, se é na hora, a bunda da criança sabe de imediato. Bunda de criança não é boba. Tem senso do que é certo e do que é errado. E, por vontade do Divino, não é só a bunda da criança que fica vermelha. A mão que dá a palmada também fica. As ardências é que são diferentes. A ardência da mão dói bem mais. E por dentro. Por isso, a bunda inteligente será grata a essa mão, para sempre.
“Estava com febre, com certeza. Febre alta, mas febre saudável que termômetro não marca. Minha mão, por instinto, me ajudou a entender o que se passava comigo. Ali, pela primeira vez, algo maior acontecia. Me tornei um homem descomunal, assustador. Súbito, veio o êxtase e, depois, o alívio. A febre baixou. Voltei ao meu tamanho de menino. Não me preocupei com o que meu corpo havia posto para fora. Era um tipo de cola branca que me havia purificado. A Tia sabia mesmo das coisas. Achei graça. Me aconcheguei nos lençóis. Virei para o outro canto e apaguei.
“Eu a conheço. Irá esperar o tempo que for. Uma vida, se preciso. A vez é minha. Eu que arrume o que dizer, invente um caco qualquer, mostre uma expressão de rosto que seja indício de espanto ou de contrariedade ou de assentimento. Ela não abrirá a boca. Vou pela reação óbvia. Reconheço o cheque-mate. Mas não deito o rei no tabuleiro. Voltar aos 6 anos depois dos 30 é privilégio. Tenho tempo de sobra para me reaproximar dos meus irmãos, dar mais atenção a Isabel, estar mais atento ao Nuno e á Rosário.
“Feito isto, respira fundo três vezes e solte o ar pela boca. Novamente, deixa teu corpo sentir o benefício. Junta o arroz ao refogado, mexendo sempre. Deixa refogar mais uns instantes. Junta então o vinho e a água (com a solenidade de sacerdote em celebração) e deixa cozinhar até ficar soltinho. Retira o arroz do lume e mistura-o com a lentilha reservada. Ao misturar, recita e repete quantas vezes for: “saúde e paz, é assim que se faz“.