Pré-leitura do livro “João Miguel”, de Rachel de Queiroz

A AUTORA

Rachel de Queiroz (1910-2002), escritora, jornalista e tradutora, primeira mulher na Academia Brasileira de Letras, teve seu brilho reconhecido por prêmios (Prêmio Jabuti, Prêmio Machado de Assis, Prêmio Camões, entre tantos) e alguma popularidade, por ter sua obra levada ao grande público através do cinema, da televisão e da sua atuação na imprensa.

A PUBLICAÇÃO

O livro “João Miguel”, de autoria de Rachel de Queiroz, foi publicado pela primeira vez em 1932. Uma das reedições mais recentes é da José Olympio Editora, de 2022, com 159 páginas.

CIRCUNSTÂNCIAS

João Miguel é apenas mais um sertanejo lutando pela sobrevivência através do trabalho pesado. Então, acontece.Embriaga-se e mata por motivo fútil.

A prisão imediata desmonta sua vida e quebra sua alma. Os dias e as noites passam devagar. Um arremedo de comunidade informal vai se formando na cadeia. Três mulheres fazem parte: Santa, Angélica e Filó (seus nomes já dizem algo?). E há outros presos e os gestores.

A questão é se João Miguel aguentará, se terá um recomeço, uma segunda chance para viver sua vida. O livro conta tudo.

A IMPORTÂNCIA DO LIVRO

Rachel de Queiroz tinha apenas 22 anos quando este livro foi publicado. Mesmo tendo todo o vasto sertão para cenário (como fez no O Quinze, romance de estreia, dois anos antes), a autora parece impor-se o desafio de fazer todo o romance acontecer entre as quatro paredes do ambiente (insuportável?!) de uma precária cadeia. E o vence com brilho e densidade. O texto é o tempo todo simples e direto, no exato tom da linguagem sertaneja, mesmo quando os fatos e as circunstâncias são dolorosos, delicados, complexos.

No Nordeste, a violência se junta com a pobreza. Passa um século e a realidade não muda. Não há luta por mudanças, só por sobrevivência para uns e manutenção das velhas estruturas de poder para outros. Para os de baixo, tudo parece escolha divina, uma espécie de predestinação ou merecimento. Para os de cima também.

O LIVRO

A trama junta e mistura três tipos de pessoas: as inocentes, as criminosas e as presas. Com o tempo, as três vão ficando parecidas umas com as outras. Como se tudo fosse aos poucos se tornando normal, inevitável — o crime, a dor, a traição, a liberdade, a prisão, até o perdão.

As portas das celas, sob certas condições, podem ficar abertas, e os presos podem circular pela cadeia. Ninguém foge, todos respeitam os marcos invisíveis. É a autora falando sutilmente de psicologia individual e de limites sociais.

João Miguel se submete, como quase todos os personagens, a um tipo de fé, sorte, destino. Só quando está sob o efeito da cachaça ele é capaz de matar e de se revoltar com a realidade.

CURTAS

“Foi destino que eu trouxe… e quando a gente tem assim a sorte de uma coisa, o jeito que tem é deixar o pau correr…

“Pai, não sei quem era. Minha mãe morreu quando eu ainda me arrastava. Me entendi atrás de um burro, tangendo comboio de algodão e cachaça…

“Pra mim, a qualidade de gente de sorte mais desgraçada que tem no mundo é mulher…

“Parecia que tinha as veias ocas. Como se a cadeia lhe houvesse chupado a coragem e a força de homem.

“Pode ir! Ninguém te agarra! A estrada corre pra lá e pra cá!

“Tem criminoso e tem criminoso. Ele matara… mas não era criminoso.

BONS MOMENTOS

“Mode que era a briga?… Dizem uns que era por causa de uns dinheiros, outros, de eleição, outros que tem rabo de saia no meio…eu só sei é que o moço pegou uma bala bem no meio da arca do peito, e não teve tempo de dar nem um ai! Morreu com a alma dentro, coitado!

“Ele marchava, arrastado, inconsciente, sempre com o pensamento no morto, na faca, no seu gesto rápido, movido por um impulso estranho e novo, aquele rasgão na carne mole, e a sangueira roxa, e agora a desgraça sem remédio…Se pudesse começar de novo! O homem, diante dele, vivo, gritando, também bêbado! …

“Quem é, no mundo, que ganha com cadeia? O governo fica com uns poucos de homens nas costas, para sustentar, e ainda por cima tem que pagar os soldados de guarda. O patrão perde seu empregado, muita vez o seu homem de confiança. A terra deixa de ter quem limpe, quem broque, quem plante. Quantos alqueires de milho não se deixou de apanhar por minha falta? E agora nós? De que serve para a gente a cadeia? Só pra se ficar pior…A gente aprende a mentir, a se esconder, a perder o sentimento…

“É muito difícil, Dona Angélica… Já não contei à senhora que me criei atrás de comboio de cachaça? Eu era molecote deste tamanho, e já me davam trago para beber na boca da ancoreta…Foi destino que eu trouxe. E quando a gente tem assim a sorte de uma coisa, o jeito que tem é deixar o pau correr.

“Quando acaba, ainda por cima ela está barriguda. Veja como o cão atenta! De você, que era homem capaz de aguentar família, nunca teve nada; agora, logo que se juntou com Salu, tome menino novo! Diga se não é mesmo um destino! Coitada, tão magra, tão amarela, com o bucho por acolá… e toda cheia de pereba pelas mãos, pelas pernas…corta coração!

“A grande causa de esquecimento, a responsável pela pouca contrição da gente e a pouca constância no arrependimento, é o tempo não ter, como o espaço, uma coisa onde se possa ir e vir, sair e voltar…O que se passa no tempo, some-se, anda para longe e não volta nunca, pior do que se estivesse do outro lado de terra e mar. Afinal, quem pode manter, num espelho, uma imagem que fugiu?

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.