O AUTOR
Luciano Maia é poeta, linguista, tradutor e professor universitário. Nasceu em 1949. Tem formação superior em Direito e mestrado em Literatura Brasileira. Tem mais de 20 livros publicados, alguns em várias línguas. É membro da Academia Cearense de Letras.
A PUBLICAÇÃO
O livro ‘Jaguaribe – Memória das Águas’, de autoria de Luciano Maia, com 92 páginas, foi publicado em 1982, está na décima edição (2012, Armazém da Cultura).
CIRCUNSTÂNCIAS
Os poetas são especialmente marcados pelos rios que passam por sua infância e nunca mais abandonam suas vidas. Nas palavras do autor de ‘Jaguaribe’: “fui menino habitante das margens deste rio, quadra da minha vida cujas lembranças não se apagam nunca…universo de ressonâncias em mim profundas… quantas vezes naveguei o sonho de um barco até a foz…”.
São setenta versos independentes e harmônicos costurados naturalmente pelas águas do rio-antigo, do rio-menino, do rio-agora e do rio-poeta.
Na escrita do adulto, os versos fazem o diálogo sem fim do menino com o rio e com o tempo.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
O rio é um tema universal. Todos os rios abraçam seus poetas, mas recusam a banalidade. Luciano Maia produziu uma peça literária originalíssima e cheia de lirismo, fugindo da abordagem mais comum dos cenários de seca, dor e sofrimento explícitos. Jaguaribe é todo sugestão e possibilidades, grita, fala, canta e cala em ritmo envolvente.
Para serem percebidas e sentidas, a beleza e a força das palavras dependem da sensibilidade do leitor, de como ele entende a natureza, de como mergulha na própria meninice e de como sente avançar a vida, líquida como água.
O LIVRO
O autor abre o livro com uma dedicatória singular, oferecendo aos cantadores (poetas duendes do sertão), aos retirantes (povo peregrino habitante dos caminhos), aos bichos (viventes reverberados pelos passarinhos), às nuvens (andarilhas tropicais), aos rios-irmãos (do sertão sedento) e aos rios forasteiros e ao mar “estes versos de múltiplo elemento: terra e fogo e água e sol e vento”. É o primeiro mergulho.
Seguem-se quatro capítulos que o autor chama de Canto (dos elementos, das nascentes, da vida e da morte e da água e do tempo) e uma (in)conclusão (Ainda o Jaguaribe).
CURTAS
“É o Jaguaribe sereno
enriquecido de estórias
que o tempo vai escrevendo
sobre a pauta das memórias
dos que vão vendo e vivendo
os seus fracassos e glórias.
“Os meninos são meninos
que se proíbem crescer…
Sem passado (alheia história)
sem presente (alheio nome)
o futuro se demora
em sempre-espera (abandono)
e não se descobre a hora
da vida que não tem dono.
“Faz tempo que o tempo é o mesmo nessa terra tão sem tempo…
O homem calcula a esmo
o tempo, que vive dentro
de outro tempo, sem termo
eterno em cada momento.
“O tempo, sim, esse andava
prometendo coisa ruim.
“O rio Jaguaribe traz canções
ainda não cantadas pelo tempo (estórias ancestrais), traz emoções tangidas em segredo pelo vento.
“Metafísica estranha, dessa água além do tempo nunca conformada.
BONS MOMENTOS
“Penetra o tempo a água em movimento desde os mananciais subterrâneos
às nuvens inclinadas pelo vento.
Nos longos céus, de esperas e enganos a água da memória vara o tempo
em minutos, em meses, em milanos.
E permanece intemporal o rio
lançando ao tempo o eterno desafio…e
E na verdade o rio não tem pressa
nem se detém (o tempo o rio ganha).
“Tempo e água dessangram das memórias
de um rio-antigo (pálido viajante) reinventor de mágicas estórias
que são a história do meu mundo infante.
Um rio-antigo que não vai embora
desse mundo, sequer um só instante mas deixou o seu leito (o rio-agora
de água e tempo, num lugar distante percorre outro trajeto: um interino
e invisível leito sem espuma)
e não rega o meu sonho peregrino
do regresso que intento e que é uma viagem ao rio-antigo, que eu-menino não consigo rever em parte alguma.
“As cidades deitadas, como que
espiam o tempo na janela aberta
vendo embaixo (a seus pés) a se mexer em remansos passos liquefeito
passar o Jaguaribe distraído
sem se dar conta de que deve, ao certo deter-se em demorado cumprimento
à paisagem de roças tão efêmeras.
É que ignora o rio a precisão
de água que há além de suas margens em terrenos propícios à fartura.
É que ignora o Jaguaribe o ‘não’
que se tem dito ao ‘sim’ dessas barragens
que o rio a cada inverno inaugura.
“Há nele uma ampulheta atravessada vazando horas-areias sobre os campos que às vezes pelas águas é levada
não se sabe em que tempo, pois são tantos
os que dela não cuidam: a enxurrada
a ida, a volta, a lua, os pirilampos
que permanece o rio intemporal
em sua arquitetura de cristal.
“Vou ter de esperar o tempo
de arredar seixo e garrancho
pra rever o chão fendido
e replantar teimosia.
E depois colher certeza
de que carece mudar
a vida que é nossa morte
há mais tempo que o bastante.
E o bastante é demais
só no tempo se fiar.
“Já morri, Jaguaribe, as tuas águas para em futuros tempos renascê-las.
Transcendi tantas dores e estas mágoas são regá-las assim, são revivê-las.
O teu choro (corrente de águas rasas)
é fácil de enxergar. Duro é mantê-las sempre enxutas de pranto as longes águas
do rio-antigo, alimentado pelas
fontes perenes do meu mundo infante despertando o menino que em mim vive se me posto outra vez de ti diante.
E um rio-agora o sonho me proíbe
de, menino, buscar no teu distante
rio-antigo o meu mesmo Jaguaribe.