PRÉ-LEITURA DO LIVRO “GEOGRAFIA DA FOME”, DE JOSUÉ DE CASTRO

O AUTOR

Josué de Castro, pernambucano (1906-1973), médico, geógrafo, cientista social e diplomata, foi perseguido pela ditadura militar de 1964. Escreveu trinta livros, vários sobre a fome.

A PUBLICAÇÃO

O livro “Geografia da Fome: o dilema da fome: pão ou aço ”, de autoria de Josué de Castro, foi lançado em 1946, com várias reedições, também em 2022, pela editora Todavia, com 400 páginas, assim como no Kindle-Amazon. O livro está traduzido em 25 idiomas.

CIRCUNSTÂNCIAS

Josué de Castro, médico especialista em Nutrologia e geógrafo, estudou com o rigor científico possível a questão da fome em vários continentes, mais profundamente no Brasil. Sua credibilidade pessoal trouxe para o livro reconhecimento internacional.

A fome total, endêmica ou epidêmica era, há quase um século, assunto reservado, evitado, dentro e fora do país. Desde os tempos de Thomas Malthus, que séculos antes havia prognosticado a incapacidade da população ser bem servida, se acreditava impossível que a produção pudesse crescer na velocidade da multiplicação da população.

A IMPORTÂNCIA DO LIVRO

Josué de Castro desfaz rapidamente a ideia de que o problema da fome era natural, inevitável, que a própria natureza estabelecia limites. O livro atribui a fome ao próprio homem. O autor se refere ao problema como “um flagelo criado por homens, contra outros homens”. O homem cria restrições e age culturalmente, socialmente, e não só economicamente. As gradações da fome e suas características variam, mas elas estão no mundo inteiro, mesmo entre países prósperos.

Nos dados, nos fatos e na análise, o autor faz um trabalho consistente e impactante. E era ainda o ano de 1946.

O LIVRO

O autor estabelece como objetivo básico “localizar com precisão, delimitar e correlacionar fenômenos naturais e culturais que se passam à superfície da terra.É dentro desses princípios geográficos da localização, da extensão, da causalidade, da correlação e da unidade terrestre que pretendemos encarar o fenômeno da fome”.

Ele divide seus estudos em cinco regiões brasileiras: área amazônica, área Nordeste açucareiro, área do sertão do Nordeste, do Sul e do Centro. Dedica a cada uma o seu próprio espaço na obra e conclui com uma visão geral do país.

Faz, no caso de outros continentes,  oportunas observações, sempre que uma comparação apoia a leitura e facilita a compreensão.

IDEIAS CENTRAIS

“… Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável de ser abordado publicamente. O fundamento moral que deu origem a essa espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa… 

“… É que ao imperialismo econômico e ao comércio internacional a serviço deste interessava que a produção, a distribuição e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenômeno exclusivamente econômico — dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econômicos — e não como fatos intimamente ligados aos interesses da saúde pública.

“… Como veremos oportunamente, numa extensa área dos Estados Unidos da América, no seu velho sul agrário, continua muita gente a morrer de fome, continuam a manifestar-se entre as populações locais graves doenças causadas unicamente pela falta de uma alimentação adequada. Na parte do continente que corresponde à América Latina, o fenômeno é ainda mais grave. Mais de dois terços da população dessa área passam fome, sendo que em algumas zonas a fome alcança três quartos.

“… Consideramos áreas de fome aquelas em que pelo menos metade da população apresenta nítidas manifestações carenciais no seu estado de nutrição, sejam estas manifestações permanentes (áreas de fome endêmica), sejam transitórias (áreas de epidemia de fome). 

“… Das cinco diferentes áreas que formam o mosaico alimentar brasileiro, três são nitidamente áreas de fome: a área amazônica, a da mata e a do sertão nordestino. Nelas vivem populações que em grande maioria — quase diria na sua totalidade — exibem permanente ou ciclicamente as marcas inconfundíveis da fome coletiva. 

“… No alto sertão, o clima se ameniza levemente, a vegetação do tipo de savana se enfeita, em certas zonas, com as fitas verdes dos carnaubais, enlaçando os vales férteis da região. Rareiam um pouco as espécies espinhentas e as secas são menos impiedosas…

INSIGHTS

“… A fome não é mais do que uma expressão — a mais negra e a mais trágica expressão do subdesenvolvimento econômico.

“… A alimentação do brasileiro se mostra assim imprópria em toda a extensão do território nacional, apresentando-se em regra insuficiente, incompleta e desarmônica, arrastando o país a um regime habitual de fome…

“… Orientada a princípio pelos colonizadores europeus e depois pelo capital estrangeiro, expandiu-se no país uma agricultura extensiva de produtos exportáveis ao invés de uma agricultura intensiva de subsistência, capaz de matar a fome de nosso povo. ..

“… A tomada de consciência da realidade social brasileira por parte de nosso povo incutiu no espírito das massas essa ideia-força de que só através do nosso desenvolvimento econômico real nos libertaremos da opressão e da escravidão econômica que esmagam a maioria de nossa população.

“… Ao lado da estrutura agrária, há outros obstáculos estruturais a vencer. Não é só a infraestrutura agrária que está superada, mas também os processos de distribuição da produção agrícola com sua rede interminável de intermediários e atravessadores.

“… A vitória contra a fome constitui um desafio à atual geração— como um signo e como um símbolo da vitória integral contra o subdesenvolvimento.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.