O AUTOR
José Tolentino de Mendonça, além de ensaísta e poeta, especialista em estudos bíblicos, é Cardeal (português) e Prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação.
A PUBLICAÇÃO
O livro Elogio da Sede, de autoria de José Tolentino Mendonça, foi lançado em 2018, com 158 páginas, pelas Edições Paulinas. O prefácio é do Papa Francisco.
CIRCUNSTÂNCIAS
Anualmente, na Quaresma, o Papa Francisco e sua equipe se reúnem em retiro por uma semana para reflexões sobre a vida e o mundo. O Cardeal português José Tolentino Mendonça, nomeado recentemente, especialista em Cristianismo e Cultura, conduziu o encontro de 2018. Os dez textos que ele usou no evento viraram livro.
A IMPORTÂNCIA DO LIVRO
No brevíssimo posfácio, o Papa Francisco escreve: — Obrigado por nos ter recordado que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito também voa fora, trabalha fora…como trabalha nos não crentes, nas pessoas de outras confissões religiosas, é universal.
O livro cita a Bíblia com frequência, mas o número de vezes em que são citados escritores (do Brasil, Clarice Lispector) líderes políticos, religiosos (como Dom Helder Câmara), filósofos e outros é maior ainda. Assim, a leitura abre-se em interessantíssimas perspectivas e enriquece a experiência do leitor. Do ponto de vista da qualidade do texto, da profundidade e da diversidade da abordagem da questão da sede (ampla e original visão da incompletude humana), a obra tem potencial de encantar o leitor e a leitora em vários momentos
O LIVRO
O livro se estrutura em dez capítulos com foco na sede, esse vazio, essa ânsia ou desejo e carência que acompanham o ser humano em sua trajetória. Conscientemente ou não, cada pessoa busca alguma forma de dessedentar-se, completar-se.
O texto é leve e culto, mas cem por cento acessível. A abordagem não é exclusivamente religiosa, embora a vida de Jesus seja a referência central, mesmo quando ele é dado como um homem da periferia.
Há trechos especialmente sensíveis, como quando o autor expõe sua convicção sobre a lágrima, dando-lhe uma dimensão surpreendente.
CURTAS
“A lonjura não é só lonjura: é uma inusitada vontade de vencê-la. A ausência não é só ausência: é uma mobilizadora expectativa.
“A tarefa existencial continua, o caminho permanece aberto até o fim.
“Isso é o mais importante. Que nos sintamos amados.
“O encontro com Jesus não é um ajuste de contas, nem Jesus vem revelar um Deus justiceiro.
“Na verdade, as periferias não são apenas lugares físicos, são também pontos internos da nossa existência, são lugares da alma humana.
“Tal como a nossa fome não é só de pão, a nossa sede não é só de água. Dá muito o que pensar, por exemplo, o significado antropológico da mesa…
BONS MOMENTOS
“…mesmo que o relógio marque outras horas, muitas vezes na nossa vida e meio-dia. O instante exato em que agora estamos é meio-dia. Sempre que acedemos ao convite para uma viagem interior e meio-dia. Sempre que nascemos e renascemos no encontro com a Palavra e meio-dia. Sempre que nos dispomos a escuta profunda de nossa sede e meio-dia. Sempre que nos abeiramos da fonte em silêncio e esperança, sem mais…
“…a sua sede não se materializa na água, porque não é de água a sua sede. É uma sede maior. E a sede de tocar as nossas sedes, de contatar com os nossos desertos, com as nossas feridas. E a sede dessa parte significativa de nós mesmos que fica tão frequentemente adiada, abandonada à solidão. E a sede dessa porção de nos (porção suspensa, omitida, calada) para a qual não encontramos interlocutor…
“…não é fácil reconhecer que se tem sede. Porque a sede e uma dor que se descobre pouco a pouco dentro de nós, por detrás das nossas habituais narrativas defensivas, assépticas ou idealizadas, e uma dor antiga que, sem percebermos bem como encontramos reavivada, tememos que nos enfraqueça; são feridas que nos custam encarar, quanto mais aceitar na confiança…
“…Pensemos nas nossas lágrimas. Nas primeiras que derramamos na infância e nas últimas, as mais recentes. A nossa biografia também se conta pelas lágrimas: de alegria, de festa, de comoção luminosa; e de noite escura, de dilaceração, de abandono, de arrependimento e de contrição. Pensemos nas nossas lágrimas derramadas e aquelas que não passaram de um nó na garganta e cuja falta ficou depois pesando ou ainda nos pesa. A dor dessas lágrimas não choradas…
“…Não tenhamos dúvidas, a periferia condiciona a realidade de uma forma que podemos dizer estrutural. Nao podemos, como tal, não nos confrontarmos com ela. Um discípulo de Jesus deve saber isso profundamente e por duas razões fundamentais. Centremo-nos na primeira delas. O próprio Jesus é um homem periférico. Ele não era um cidadão romano — não pertencia ao primeiro mundo de então — nem integrava a elite judaica…
“… O que nos enfraquece não é, de fato, a escassez, mas a superabundância, não é a vulnerabilidade, mas o poder mal compreendido na sua finalidade; não é a frugalidade, mas sim o desperdício. O que nos enfraquece é não termos escutado até o fim o apelo que está por detrás da fome e da sede….