PORQUE LILI FILISALPINA NÃO DEIXOU QUE LHE ATRAVESSASSEM O CANAL DE SUEZ

Mal desbordou o cotovelo nonagesimamente graduado da escanteada pracinha dos Três Pudores, sede momentaneamente abandonada pelo desaforamento orçamentário do sempre ditoso e choraminguento poder público e secularmente consagrada às castidades (abstinência de sexo, decência, honradez, probidade, pudicícia, pureza), aos pejos (acanhamentos, constrangimentos, embaraços, timidezes, vergonhas) e aos recatos (cautelas, discernimentos, discrições, modéstias, prudências), situada no marco teodoliticamente central de Angu das Onças, cidadezinha perdida nesse mundaréu de meu Deus, lá onde Iscariotes perdeu a evangélica capacidade de encalistramento, a moçoila casadoira, já descambando na declivosa e serpenteante ladeira dos desencantamentos maritais, Elisabeth Cisalpina, mais conhecida pelo linguarudo e desmazelado povo citadino como Lili Filisalpina, ao ouvir galanteios despudorados de um donjuanista juramentado e sobejamente possuído de enxerimentos, embora desprovido de anseios matrimonialísticos, mas desejoso de atravessamentos pelos então inavegáveis canais de Suez do mulherio desesperançado de Angu e adjacências, desatarraxou em volta e meia as porcas dos parafusos fixadores das roliças e virginosas coxas à mediana bacia óssea que dá conformação bem delineada e prodigamente acentuada a protuberantes e saracoteantes ancas, pulverizou com líquido oleaginoso as arruelas e os caixilhos dos joelhos calosos em face de recordes de permanência em ajoelhador de igreja consagrada a santo casamenteiro, distribuiu nervosos massageamentos pelas musculentas batatas das pernas e, então, desandou numa destrambelhada corrida de cem metros rasos, retilínea e olimpicamente cadenciada, em direção ao rio que, à falta de chuvaradas, relampejadas e trovoadas, carecia de sangramentos de água, o leito seco, arenoso e extremamente esquentado por efeito dos incidentes e calorosos raios solares, a causar esbaforimentos pulmonares e queimaduras plantares em qualquer ser vivo que teimasse sobre ele caminhar.

Lili, profunda conhecedora de atalhos e veredas e até esconderijos cavernosos, não estancou, qual mula braba, prosseguindo na mesma pegada pelas margens revestidas de mato rasteiro e ornadas de sinfônicos arbustos, daí deixando-se escorrer, de nádegas ao chão, até a embocadura de cacimba cavada pelas lavadeiras de roupa suja e onde costumava banhar-se em nudez de nascença, embora convencida de ser alvo preferido dos moleques brechantes e protagonistas de solitários atos pecaminosos, àquela hora sem viva alma por perto, ali adentrou mais decidida que a longeva e anglicana coroa, aligeirou-se para a frienta porção de tranquilizante água acumulada lá no fundo, e, tão logo sentiu o esfriamento fluido atingir-lhe a  metade das caramelizadas canelas, arriou de vez o já suado corpo e sentou-se no piso do poço, abrindo as pernas em agradável aliviamento. Jura ter ouvido um chiiiiii, o onomatopaico som das águas resfriando ferro em fogo. Lembrou-se, então, da enérgica mãe, ora adejando em plano mais elevado, que sempre a recobria de aconselhamentos como este aqui plenamente ajustável ao momentoso esfuziamento feminil: Vá banhar-se sempre que for preciso esfriar o facho. Era exatamente o caso.

O Nequinho de Anicete Felismina, molecote levado da breca, profundo conhecedor das coisas subterrâneas da geografia e da sociedade onçanguense, mas descorajoso de ajoelhar-se aos pés de padre confessor por conta da substanciosa enfieira de pecados, dos mais variados naipes, que carregava sobre os magricelos ombros, não se cansava de vangloriar-se por ter presenciado a cena, atocaiado por detrás de uma bem pronunciada touceira de capim, a poucos metros do palco subarenoso onde a moçoila casadoira procedeu ao esfriamento do facho em salobras águas de cacimba, e arrepiava-se todo, em meio a tremeliques de choques no sistema nevrálgico, todas as vezes que a lembrança o fazia rebobinar na prodigiosa memória juvenil o temeroso fato de, numa boquinha da noite, ao voltar sozinho de caçada à baladeira pelas matas da  propriedade do coronel Ambrosiano do Espírito Santo, ter ouvido, ao passar pela embocadura da cacimba, a frágil e doce voz da inviolável Lili a cantarolar estes versos: Não diga ser isto uma grande asneira / O querer de uma jovem donzela / Um bom homem para se casar / Gerar e criar uma penca de filhos / Eu não vou morrer velha solteira / Na porta do amor uma tramela / Com frase: É proibido entrar! / Pois isso, pra mim, não terá o menor brilho. Saído são e salvo do mexinflório da oiçagem, Nequinho não esperou por tempo bom – Cruz credo! -, pois, das suas regras de livramentos constava que Filhinho de mamãe não nasceu pra ser herói de causos fantasmagóricos… então, pernas pra que te quero.

 

Notas do autor:

  1. Texto produzido sob influência de um certo José Cândido de Carvalho, advogado, jornalista e escritor fluminense, autor da obra-prima O coronel e o lobisomem (1964), revelando-se então um outro inventa-línguas e ombreando-se, entre outros, a Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, segundo o escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto, na maestria de fazer “do código sertanejo um novo universo linguístico, rico pela criatividade e pelo colorido”. Titular da coluna O impossível acontece, na prestigiosa revista O Cruzeiro, José Cândido selecionou causos ali publicados, reunindo-os em Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon (1971), que lembra Sagarana (1946), da lavra do mineiro imortalizado por Grande sertão: veredas (1956), de Riobaldo (Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…) e Diadorim.
  2. Baturité marcou presença, na década de 1960, na coluna do José Cândido. O causo. Zequinha Paixão, titular de concorrido escritório de contabilidade pública, especializado em escrituração de prefeituras, vereador há vários mandatos e então presidente da Câmara Municipal, apresentou projeto de lei que, posto sob a criteriosa votação do plenário, acabou sendo rejeitado por unanimidade. Ou seja, até o Zequinha, o autor, votou contra. Não se conhece a razão disso, haja vista que, na condição de presidente da Casa, bastava ter retirado o assunto da pauta de votação. Pois é: o impossível aconteceu.

 

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.