Por um triz, por Francisco Luciano Moreira Gonçalves (Xykolu)

“A amizade é uma espécie de amor que nunca morre…” [Mário Quintana, em Porta giratória. São Paulo: Globo, 2007; pág. 137].

Nos últimos anos da “década perdida” – a do movimento das “Diretas Já”, do processo de redemocratização e da volta do pluripartidarismo; da promulgação da Carta Magna que ainda vige, embora já muito emendada; do desarranjo inflacionário, dos planos econômicos – da tablita! – e das mudanças do padrão monetário; da substituição da ortodoxia pela heterodoxia na política econômica; do estranhamento e da contemplação ao A idade da terra, de Gláuber Rocha; do sucesso de O nome da rosa, de Umberto Eco; e da queda do Muro de Berlim –, dois graduandos de Economia sobressaíam nos ambientes efervescentes de tradicional escola pública de ensino superior, tanto pela inteligência prática quanto pelo senso crítico e exemplar desempenho acadêmico, merecendo, de professores e colegas, a reverência e a atenção sempre dispensadas aos melhores. Havia também um pouco de inveja… naturalmente.

Ele se chamava Leandro. Demonstrava ter uns vinte e poucos anos de idade, era franzino e alto – mais parecendo jogador de basquete –, de pele amorenada e rosto alongado, barba rala, olhos cinza-claros, perscrutadores, e cabelos lisos e pretos, cortados ao estilo militar. Mantinha comportamento pautado na tranquilidade e cordialidade. Atencioso, conversava, discutia e até lecionava com peculiar naturalidade. Desfilava o seu fusca bege, presente recebido da mãe – viúva e pensionista – quando de sua festejada aprovação no vestibular.

Ela se chamava Ivna. Conduzia com brilhantismo sua segunda graduação, eis que já detinha o título acadêmico em Ciências Contábeis. Já se aproximando dos quarenta, chefiava o setor de contabilidade de uma empresa de grande porte, cujo chefe do setor jurídico desposara há quase quinze anos, com quem tivera dois filhos, ora em plena puberdade. Morena de olhos castanhos e altura mediana, ágil e proficiente na leitura do que ocorria em seu entorno, consciente dos vários papéis que lhe cabiam desempenhar no seu mundo bem particular, Ivna sabia usufruir, sem arrogância e sem empáfia, de tudo que lhe podia proporcionar uma personalidade forte e inquebrantável. Era uma mulher singular.

Quando algum professor se fazia ausente, parte da turma deles se acercava e suas dúvidas se dissipavam ante o conhecimento teórico e o desempenho didático de ambos. Houve até um momento em que, por força das circunstâncias, Leandro assumiu o quadro verde para melhor explicitar uma questão de alta complexidade. Concentrado no que fazia, não percebeu a chegada do mestre, que, atrasado em cerca de meia hora, não quis interrompê-lo, assumindo a postura de aluno. Concluída a explanação, viu um braço, com mão espalmada, levantar-se lá no fundo da sala, e, na sequência, ouviu uma voz bastante conhecida a interpelá-lo respeitosamente:

– Mestre, perdoe-me por ter chegado atrasado; o senhor poderia, por favor, repetir a sua explicação? – Era o titular da disciplina.

E tão inusitada intervenção serviu ao jovem aprendiz não apenas como reconhecimento institucional de seu talento, mas também como chave para abrir generosas portas para monitorias, bolsas, estágios, preparando-o para futuros voos bem mais significativos.

Ivna e Leandro já não eram apenas colegas; a parceria já adquirira contornos de amizade. Nos intervalos das aulas, costumavam intercambiar informações, experiências, vivências. Logo descobriram que muito havia de comum entre eles, incluindo a fé católica restrita às missas dominicais e o hábito da leitura, ambos membros atuantes do Círculo do Livro. Resenhavam oralmente obras recém lidas, muitas delas solenemente permutadas em pleno ambiente acadêmico.

Na primeira noite do semestre letivo, eles retomaram assim a mais extracurricular de suas práticas discentes:

– Lê, nessas férias li Razão e sensibilidade, da Jane Austen, e revisitei O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë, romance que, em resumo, reflete “uma libertação da essência humana”…

– Iv, creio que não fui tão dedicado à leitura quanto você. Apenas iniciei o Ilusões perdidas, de Honoré de Balzac, logo interrompendo sem qualquer razão plausível… talvez cansaço ou preguiça.

– Pois bem, amigo. Estou concluindo Os sete minutos, de Irving Wallace. Uma daquelas obras que nos cobram dedicação integral…

– Como é que o Millôr diz isso…? Vou me lembrar. Ah! “… não tem hausto, parada para respirar”.

– Isso mesmo. Esta você vai ter de ler. Quem ma deu de presente foi meu marido, com a seguinte recomendação: Mire sua atenção na atuação do advogado de defesa, o Mike Barrett.

– Então, vamos a uma daquelas solenes permutas de livros. Logo, logo, concluo Proteu, de Morris West, australiano, quase servidor de Cristo, autor de Sandálias do pescador, Advogado do diabo…

– Ok. Na próxima quarta, faremos a troca…

– Combinado.

Os dias passaram e, por conta da incompreensível deslembrança de Ivna, nada de se confirmar o “combinado”.

Eis que chega o carnaval… Sexta, à noite, mais uma vez desacompanhada de Wallace – embora Lê sempre andasse com West, ainda não acolhido por ela que exigia solenidade no negócio –, Ivna lhe fez uma proposta.

– Lê, véspera de carnaval, podíamos cometer uma irresponsabilidadezinha. Matamos o segundo período. Vamos até meu apartamento e fazemos a tão adiada permuta de livros. Você topa?

Com alguma resistência, vencida pelos argumentos que ela ia contrapondo às ponderações do amigo, a proposta acabou sendo aceita. E assim agiram.

Cada um em seu próprio carro – ela, num Volks Pontier vinho; ele, no fusca bege –, percorreram naturalmente todo o trajeto sem enfrentar os graves problemas de trânsito que já se verificavam àquela época. (Continua)

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.