Política, justiça e pós-verdade

A pós-verdade sempre existiu, porque a mentira nos persegue e infelicita, desde os tempos adâmicos…, mas ela vicejou, floresceu e frutificou no pântano das redes sociais.

O termo PÓS-VERDADE veio à luz em 1992, numa despretensiosa entrevista do dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich. Ganhou corpo nos anos 2000, chegando a 2016, segundo o dicionário da Oxford, como a palavra do ano.

Desde então, vem expandindo o seu campo semântico com seus famigerados filhotes: “fake news”, “fatos alternativos” e o temível ‘’domínio do fato’’ (na seara jurídica).

Trata-se da estilização, da customização da mentira, que se pretende verdadeira, passando a produzir efeitos factuais, como se nascidos da verdade fossem.

Mal comparando: a mentira está para a pós-verdade, assim como o gole está para o porre…. Ela é o gatilho para um estado de embriaguez coletivo.

Este é mesmo o propósito das centrais de fake news: desorientar, confundir… espalhar, enfim, esse “pileque homérico no mundo” (como no “cálice” de Chico e Gil). Por isso o seu controle é tão caro a quem escolhe o paul como arena política.

Depois, é só buscar a borda do planeta, num viver terraplanista…e apostar, por exemplo, na incongruência de um BBB (bala, bomba e bíblia) para engendrar um golpe de estado, num proceder inebriado por tragos de mentiras sobre a higidez das urnas eletrônicas.

A pós-verdade não é uma mentira inocente, (como uma lorota de pescador). Ela pode alterar resultados de eleições, levar pessoas à cadeia, criar mitos deletérios, enlamear reputações e até promover golpes de estado…

Enfim, virou um instrumento de batalha política, com o fito de preencher vácuos de propostas, especialmente, na extrema direita. Não é por nada que, (para a suprema vergonha alheia), encontramos bancadas inteiras a obstruírem o inquérito das fake news (a tramitar no STF), como se a mentira fosse um componente legítimo na organização da República.

E, por falar dela, como nasce uma pós-verdade?

Às vezes, vem de forma simples:
A mulher chega ao cenário de um desastre, saca o celular, faz pose dramática e produz um vídeo, afirmando que os donativos só serão distribuídos, mediante a presença do presidente da República… joga nos grupos e… Pronto!… O presidente passa a ser um sujeito vil, um demagogo contumaz, destinatário de legítima indignação.

Mas há também formas mais elaboradas, como esta:
O homem a ocupar a tribuna é um ex-desembargador, agora, advogado na defesa de um réu no STF. Dramático, invoca sua provecta idade para se posicionar como uma criatura quase póstuma (para quem o olhar da opinião já não tem nenhum valor) e poder assim fazer juras de sinceridade, como o fizera Brás Cubas, personagem de Machado de Assis.

O seu ar de paladino, ao enfrentar a corte, demonstra que a defesa do cliente fora mero pretexto para a demanda de aventuras honrosas, como se fosse ele um cavaleiro andante, componente da Távola Redonda ou membro dos Pares de França.
A democracia que ele nega tacitamente, ao se pôr ao lado de golpistas, faculta-lhe que ouse apontar para a direita e para a esquerda e disparar: “ministros, os senhores são as pessoas mais odiadas do Brasil!”.

Ele, que já fora desembargador, sabe que o menoscabo à corte é sempre um mau passo, na defesa de um réu. É lícito imaginar que o nobre causídico, na iminência do insucesso, resolveu sair atirando (tiros de tinta nas supremas togas).

Ao que parece, constituído e constituinte se irmanam na mesma pantomima… Trata-se de um caso em que a causa os escolheu. A defesa foi, de tal sorte, desastrosa que, se havia alguns atenuantes no horizonte do golpista, eles se esvaíram nas palavras “bravas” do impávido tribuno.
O doutor afirma, sem nenhuma evidência, que os ministros são criaturas odiadas…. Pondere-se: ainda que se encontrem pesquisas com baixa aprovação, rejeição é diferente de ódio…. Nesse caso, os grupos de WhatsApp não contam, porque eles agregam sujeitos, movidos por afetos semelhantes.

Mais a mais, embora a corte seja una, os ministros são indivíduos com inserções diferenciadas nos humores da sociedade…. Portanto, a afirmação é falaciosa, mas não inócua, porque serve para espicaçar os ânimos contra os magistrados.

Manifestações assim não são gratuitas e tampouco inofensivas, pois potencializam a agressividade, sobretudo num contexto político irritadiço, com humores açulados contra a Suprema Corte. Não é à toa que, amiúde, ministros vêm sendo assediados, molestados, em ambiente público.

Nas entrelinhas do discurso desse senhor, jaz um perigoso convite à intolerância e à violência.

Vê-se, pois, que as bravatas do doutor trazem o receituário perfeito de uma pós-verdade: uma falácia ou meia verdade (hiperbolizada) com potencial danoso aos alvos colimados.

Não faz muito tempo, os ministros do Supremo eram funcionários públicos muito discretos. Hoje o oba-oba já começa na indicação. Indicados, vão viver sob um assédio de tão baixo nível, quanto o que se pratica contra as subcelebridades. Muitos, é claro, não se ajudam. Até parece gostarem de ver seus nomes atirados aos cães, como se acabassem de sair de um reality show.

Lula, que é a maior vítima viva da justiça-espetáculo, sugeriu que os votos dos ministros fossem secretos. Bastou isso para a lamúria das hienas tristes: “Oh! Céus!… O Lula interferindo no Judiciário!…

Eu, sendo político, não me manifestaria dessa forma, uma fala inócua, mas com repercussão negativa na opinião pública. Todavia, como cidadão, considero deveras pertinente.

Há uma máxima do futebol que serve, em certa medida, para a justiça: “A arbitragem é boa, quando o árbitro passa despercebido.” Em ambos os casos, considero válida. A não ser que se queira roubar a cena, espelhando-se no falecido Margarida… (Era divertido: esperava-se o final do jogo para ver a performance do árbitro). Hoje, há quem acesse vídeos para assistir aos arranca-rabos entre ministros… Aí é só tristeza!…

E tudo sai pelo pior, com a presença da televisão. Aí a coisa julgada perde protagonismo para as performances pessoais, numa profusão de caras e bocas e gestos dramáticos ou excessivamente contidos. Discursos prolixos, arrastados… com floreios retóricos e hipérbatos mal formulados… desorientam o interlocutor.

Aquilo que tem a sua estética, a sua arte, o seu encanto num Camões, num Vieira torna-se dantesco num apático e limitado Nunes Marques. (O que diria Mário de Andrade, vencido um século da Semana de Arte Modena, ao ver ministros do STF a pronunciar votos, como se escrevem a Carta pras Icamiabas)?…

O Brasil precisa resgatar a verdade, para que as coisas assumam o tamanho que realmente têm. As autoridades não são entidades sacrossantas, imunes às críticas. Mas devem agir e ser tratadas com discrição, para que sobressaiam as instituições. É prudente, pois, que se distanciem dos holofotes e das claques das redes sociais, onde vicejam a maledicência e os egos inflados.

Foi nesse contexto (da justiça-espetáculo) que surgiu a Lava Jato. A palavra espetáculo significa algo grandioso para o encanto dos olhos, sem compromisso com o comezinho dos fatos…

A Globo se encarregou do cenário. (Aliás, nisso ela não tem par). Quem não se lembra daquelas tubulações, como se fossem oleodutos enferrujados a vomitarem cédulas, (num “anti-marketing” cruel contra a Petrobrás)?…E daquelas entrevistas famigeradas da PF?…E das aparições do Moro (o mito de camisa preta)?… E do infame PowerPoint de Dallagnol?…

Ali, como num roteiro de novela, costurou-se a pós-verdade que levou Lula à cadeia. Ali, recorreu-se à teoria do “domínio do fato” ou dos “fatos alternativos”, aqueles que, (como o demônio de Grande Sertão: Veredas), não precisam “de existir para haver.” Guimarães Rosa (ou Riobaldo) reflete que a possível inexistência do diabo não elimina suas diabruras.
Levaram boa parte da população a acreditar, sem amparo em nenhum documento, que Lula recebera um sítio e um apartamento, em forma de propina. Isso prova que a mentira (ou o que eu vou chamar de “verdade mítica”) move mais as pessoas do que a verdade fática.

O presidente amargou 580 dias na prisão, e, nem mesmo a absolvição desfez a má imagem tatuada na mente de boa parte da população.

De fato, a pós-verdade é um crime dentro do crime.

Na abertura da obra “Mensagem”, Fernando Pessoa traz o poema “Ulisses”. Existe uma crença de que o herói da Odisseia aportara em Portugal e ali fundou a cidade de Lisboa. O nome “Lisboa” evoluiu da palavra “Ulisses”, passando por uma série de denominações: “Olissipo”, “Lisipona”, “Lisbona”, etc. até chegar ao definitivo “Lisboa”.

Pessoa define Ulisses assim: “O mito é o nada que é tudo.”

Numa das estrofes, ele diz:

“Este que aqui aportou
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo, foi vindo
E nos criou.”

As coisas não precisam de uma existência real para existirem. E quanto mais se mitificam no imaginário, maiores se tornam os seus efeitos e seus poderes de mobilização…

Conheci caçadores que, em caçadas noturnas, levavam fumo para o Saci e crucifixos para afastarem lobisomens. É por esse nível de crença fabulosa que 52% creem que estamos a viver em pleno comunismo.

Milhões de brasileiros votaram contra o PT, em função de uma mamadeira de piroca, objeto jamais visto e tampouco mamado.
Mas, sem existir, ela escandalizou, sobretudo, os evangélicos… Resultado: o mito da mamadeira elegeu o MITO da real discórdia. Com ele, todos os reveses de uma realidade advinda de mentira.

Isso é desencantador, triste, bizarro!…. Um desdouro para o nosso tempo.

E ainda temos jornalistas, políticos, influenciadores…que jogam tudo isso no balaio da liberdade de expressão ou relativizam com análises preguiçosas.
A esses eu dedicou uma pequena ode futurista, para ver se escutam o eco do tempo:

ODE AOS INDOLENTES

Oh! Minha preguiça da preguiça dos preguiçosos!…
Oh! Minha preguiça macunaímica da preguiça dos jecas!…
Oh! Meu enfado, meu enfaro contra as mentiras dissimuladas em cápsulas de verdade!…
Eia! Hienas desconsoladas!…Rainhas das lacrações fáceis, famintas de likes!…
Oh! hiperbolização do nada! …
Ó vida!… Ó céus! …. Arre!… Stalin reencarnou num vestido encarnado!
E tingirá o Brasil e o mundo de tons escarlates! … Adeus!… Ó verde louro desta flâmula!…
Avante, patriotas!… Tragam bíblia, bala e bomba!…. Nosso sufrágio universal!…
Eia! E aquele salame de quartel!… Aquela feijoada, aquele bife!… Depositemos na cadeira do xerife!
Ai que preguiça dos isentões, centristas, centrões, equilibristas de muro!
Vixe!… Moraes repete Moro!…
Ai que preguiça das associações calculadas, das simetrias lerdas!…
Ufa!…. Desçam daí!… Antes da messe, cuidemos da terra!…
É a DEMOCRACIA, estúpidos!

Em tempo: Escrevi esse texto em evidente sintonia com a obra de Mário de Andrade. Não, não é plágio. É uma homenagem que faço a dois filhos (muito lúcidos) da Pauliceia Desvairada: o poeta Mário de Andrade e o jurista Alexandre de Moraes… Duas teimosias santas. O primeiro, em favor das artes; o segundo, da democracia!
Como brasileiro, patriota e democrata, fica o meu desagravo:
Compará-lo a Sérgio Moro é um insulto, e deve doer fundo n’alma do homem que mais fez pela democracia brasileira, em todos os tempos: o doutor Alexandre de Moraes.
Elidamos a “PÓS” e fiquemos só com a VERDADE. Dialogando, agora, com Fernando Pessoa. É o “bastante de nos bastar”.
Prof. Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo (Prof. Macedo) nasceu em Picos, sertão do Piauí, em 1960. Graduado em Letras pela UFPI, leciona língua portuguesa e literatura, nas redes pública e privada, em Teresina.

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