– EM PROSA
- UM DE SEIS IGUAL A SETE PONTO ZERO
[Texto produzido no seu devido tempo, escrito em guardanapos de papel sobre mesa de churrascaria, esquecidos entre páginas de livro de Rubem Alves – O VELHO QUE ACORDOU MENINO (INFÂNCIA) – e somente agora recuperados].
– Você pode revelar-nos a razão deste efusivo brilho nos olhos?
– Elementar, meu caro Watson! Eu acabo de chegar aos setenta… algo assim… como direi eu?… com que jamais sonhei que chegaria.
– Sim. E aí… algo a dizer nesta bendita hora, ou melhor, neste tão marcante e festivo dia?
– A bem da verdade, importa dizer que me projeto para os oitentas… todos eles… um após outro. Isso, é claro, expõe apenas uma questão de olhar sempre para a frente. Com verticalidade, embora à percepção primeira panorâmico. De quem, não desmerecendo o passado, ainda deseja construir um presente que lhe cause orgulho no futuro. De quem, se sabendo mortal, com data de vencimento desconhecida, não devidamente definida ou divulgada – e que eu não o saiba nunca… e que, se alguém o souber, não me o revele jamais… –, vai se mantendo vivo. Sei que vou morrer… um dia qualquer… mas não hoje… muito menos amanhã. Compreendo e aceito isso. Não nasci pra ser um Matusalém modernoso. Também não pretendo ir assim tão cedo… deixando muitas obrigações a cumprir. Não quero ir-me… não quero… nunca quis… embora já me sinta sempre quase pronto para… Acho que a Morte tem mais o que fazer longe de mim e, portanto, pode ir-se envolvendo com quem não sabe o que é viver. Sinceramente, eu sei. E, se ela um dia optar por mim… e isso será inevitável… não estará fugindo das suas funções básicas. Eu sou vida. Eu sou luz de candeeiro que um dia haverá de apagar-se… por falta de azeite ou de pavio. Sou Chico, ou melhor, um Xyko estilizado, diferente, distinto… embora com algum grau de identificação com outro Chico, bem mais espirituoso, bem mais criativo, humorista saudoso, a quem um dia perguntaram se tinha medo da Morte, e ele, de pronto, respondeu “Não! Eu tenho pena!”. Pelo aqui exposto, espero que, por enquanto, ela e sua reconhecida letalidade se mantenham em polo diametralmente oposto ao meu. Apesar das suas não raras incursões pelas minhas vizinhanças, pelo meu entorno. Ora a ela rogo que postergue “sine die” – ou seja, sem fixar data – o prazer (exclusivamente dela!) de vir até mim. Assim, enquanto vida houver, sigo adiante… pra onde o vento das boas novas sopra as velas da minha jangada alvissareira, auspiciosa, que um dia fundearei num certo porto de passagem. E que o mar, enquanto singro as suas ondas, flutuo sobre a sua escura profundeza, se comporte… seja de calmaria. Avante!
- CONFLITO DE GERAÇÕES
Um avô, cujas múltiplas e imensuráveis vivências se acomodavam entre a alma, que já se encantava com o avizinhamento do voo último, e o corpo claudicante, recoberto por pardacenta epiderme encarquilhada, emurchecida, rugosa, e encimado por rarefeitas e alvíssimas cãs, de aparência idêntica à de capulhos de algodão em tempo de colheita, adverte, com voz pausada e ar professoral, um de seus netos, em plena efervescência da sempre impertinente adolescência:
– Jovem, o respeito está na base de todo e qualquer saudável relacionamento humano. Ouça-me. Pertenço a uma geração que, no fulgor da adolescência, corríamos riscos nas estripulias que irresponsavelmente cometíamos. Mas, bastava o olhar de advertência dos mais velhos, em especial do pai ou da mãe, logo compreendíamos quão insensatas eram as nossas afoitezas e nos rendíamos à justeza dos castigos a nós por eles impostos. Respeito e obediência simbioticamente se complementavam. Os nossos idosos não precisavam nos cobrar respeito, pois o tinham sempre, em qualquer circunstância.
E o neto, com a calma e a tranquilidade próprias de quem se julga no comando absoluto da nave em que viaja no cotidiano da vida que, ao seu exclusivo sentir, nada – nada mesmo! – o intimida, assim reage:
– Vô, não pertenço à sua geração, a essa geração a que tanto o senhor se refere como exemplo a ser seguido. Não vivo no seu tempo. Tudo mudou, vô… incluindo nós.
E o silêncio se fez longo e profundo.
Um dia o neto também será avô. Quiçá!
- TRANSLÚCIDA E INSENSÍVEL
Luto.
Contra a inação que me inflige a dor da perda que sempre me atordoa. Perco-me na confusa sensação de nada ser ao assistir, impotente e desafortunado, a cada ação por ela protagonizada no palco do meu cotidiano. Versátil no jeito. Fria e infalível no agir. Letal. Covardemente letal. Não a acolho, mas também não a refuto.
Luto.
Contra o vazio que me invade a alma, que me abate, que me amargura, que me apequena em situações tão desalentadoras que, então, me sugerem o silêncio. E a dor da perda se liquefaz e se transmuta em lágrimas que nem sempre se precipitam pelo rosto já enrugado, mas ardem, queimam no âmago do ser. Silêncio faço. Calo-me. E como isso, pra mim, é difícil.
Luto.
Por um dia preencher este espaço com palavras, a minha matéria prima por excelência, que caibam em fatos que, se me dado fosse poder para tanto, não teriam ocorrido, quais sejam as passagens deste plano para outro superior, aos pés do Altíssimo, do Cizé, o bom; do Clovim, o belo (“gato” para as fãs); do Jô, o gordo (genial em, pelo menos, cinco línguas do seu pleno domínio); e do Ilídio, o doutor (do paletó preto e artífice dos sorrisos… dos outros).
Luto.
E que eles descansem em paz.
II – EM VERSOS
- UM OUTRO OLHAR
Não consigo preservar-me da poeira da história…
E, se isso, às vezes, muito me irrita, m’inquieta,
Algo há que sempre me abranda a alma, me aquieta:
A esplendorosa e resplandecente luz d’uma Estrela d’Alva,
Que já na eternidade brilha, cintila, com mesma translucidez.
Apraz-me, pois, embriagar-me com a prosa poética de Nava:
“Não guardo ódio [de qualquer matiz, nem de qualquer jaez];
Tenho memória!”.
- UM OUTRO AGIR
Não me quedo, não me curvo, não me dobro, não me rendo
A retrocessos que a política tupiniquim ora impor-me pretende:
Se, à esquerda, s‘instaura o da democracia depreciada, aviltada,
Sob o puído e esgarçado manto estelar de vermelhidão espectral,
Com vendilhões de esperanças que submergem à profundeza abissal
De esquemas espúrios que se nutrem da inerme riqueza nacional,
Pouco importando se a prodigalidade se põe à mesa com ou sem sal;
À direita, brame, estruge, estrepita, ameaça o da democracia aniquilada,
Sob o crucial jugo do chumbo, dos tanques nas ruas, da justiça dos porões,
Da verdade distorcida, destruída, da insensata rivalidade entre irmãos,
Do poder pelo poder, do discurso abjeto, nada cívico a incitar multidões
Que, ao som de fake news, subjuguem a liberdade a modernosos grilhões…
Importa – Oh, Deus! – que se destruam os esteios em que se funda a Nação.
“Não conte comigo pra isso!” – brada meu eu cidadão. “Vê se m‘entende?!”