Walter Benjamin, em algum fragmento das Passagens, talvez mais especificamente no Primeiro Esboço, aponta uma dicotomia no interior do movimento surrealista entre Louis Aragon, com a seta de sua escrita no Le paysan de Paris (O camponês de Paris) apontada para o passado, e André Breton, com a seta apontada para o futuro no seu livro Nadja. Essa dicotomia, no interior do pensamento benjaminiano, é produto da interpenetração contraditória entre as relações sociais de produção e o desenvolvimento das forças produtivas.
Em Fortaleza, podemos fazer uma ponte similar entre o passado literário e político recente, registrado no livro Parabélum de Gilmar de Carvalho (publicado pela primeira vez em 1977 e relançado em 2011), e o presente mais próximo, o livro Crônica da província em chamas de Airton Uchoa Neto (lançado em 2011 e desde então não se viu mais seus escritos, como se amássemos o esquecimento de bons autores vivos).
Gilmar, ainda que se utilize da metalinguagem, e ainda que, talvez pós-modernamente (seu apelo estilístico ao contemporâneo), construa apenas um roteiro de romance futuro, está imerso no teor coisal (para dizer um palavrão benjaminiano) do sertão, da cultura e imaginário popular nordestino. Airton, a quem colocaria ao lado de José Alcides Pinto, reconhecendo a devida diferença entre ambos, tem sua seta apontada para o futuro urbano, e um futuro que é presente agora, futuro nem tão doce, nem tão surreal, pois, quer se queira ou não, distópico: um real-naturalismo fantástico narrado em primeira pessoa.
Ainda com Airton, o autor do Crônica da província em chamas – melhor conceito desta geração –, disse informalmente algo que é, já de saída, nítido em seu texto: trata-se de um livro sobre o aquecimento global. Sua cosmologia um tanto bizarra não deixa de ser realista e mereceria uma análise própria seu universo de “kas”, com personagens de Mademoiselle Bistouri ao fabuloso Dr. Porras, numa narrativa visceralmente nervosa, Über den nervösen Charakter, com passagens a deixar Kafka nem tão solitário no estilo, Airton torna-se escritor distópico em seu real-naturalismo fantástico quando, na entrada do primeiro capítulo, prenuncia o que sempre esteve e agora chegou: “Apenas a extrema necessidade podia me fazer sair de casa por aqueles dias, mas a necessidade é o tipo de coisa que eu não estou em condições de evitar ou esquecer”. E logo em seguida confessa um destino geracional: “Não parava de pensar: tive planos grandiosos na juventude, depois eu me fodi, e agora estava feliz porque tinha sobrado uma migalha e pensava nisso como quem ironiza os próprios sonhos”.
Retomando Gilmar, porque em Airton temos, em sua crítica e acidez perante o mundo, um sintoma de época, o das expectativas declinantes, no autor de Parabélum ainda há uma utopia vinda do passado, talvez como aquela enunciada por Benjamin em suas teses Sobre o conceito de história; há, no texto Gilmar, apontamentos extremamente relevantes, como: “Escrevo o último livro sobre um herói e sou o último autor. Heróis e histórias serão coletivos”. Ao dizer isto, Gilmar de Carvalho está não apenas atento às narrativas orais da história vivida no sertão nordestino, como parece também fazer uma ponte com o que houve de mais avançado na arte europeia, nas vanguardas, sua busca pela crítica da separação entre autor e leitor, ator e público, atividade material e intelectual, em suma, entre a sociedade e seus meios.
É esse último ponto que encontramos numa passagem de Walter Benjamin, em seu texto O autor como produtor (1934): “Brecht criou o conceito de ‘refuncionalização’ para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho produtivo, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista. No prefácio de Versuche (Ensaios), esclarece Brecht: ‘a publicação deste texto ocorre num momento em que certos trabalhos não devem mais corresponder a experiências individuais, com o caráter de obras, e sim visar a atualização (reestruturação) de certos institutos e instituições’. O que se propõe são inovações técnicas, e não uma renovação espiritual, como proclamam os fascistas” (Benjamin, Obras escolhidas vol. I: 127).
Retornando a Gilmar, cabe lembrar que seu herói não veio trazer a paz, mas a espada, ou quem sabe um misto de Paz e Espada como no caso da experiência de Canudos, com a devida consciência de que “remendo não adianta se o pano tá roto”. E é essa ausência de remendo num pano social roto que nos remete de volta a Airton Uchoa, com o qual podemos dizer, desviando o not with a bang but a whimper (não com um estrondo, mas com um gemido) de T. S. Elliot, que este mundo do tráfico mercantil vai se decompondo com estrondo, gemido e quem sabe, até, ranger de dentes.