A palavra limite é um substantivo masculino a indicar o fim de algo, e dialeticamente, o começo de outra coisa. Enquanto processo, o limite representa o surgimento de algo novo, daquilo que é desconhecido, mas que precisa ser vivido. Na matemática, tal conceito tende a se inscrever entre os extremos a estabelecer pontos mínimos e máximos até preencher de sentido as funções ora convergentes, ora divergentes. Na natureza, a noção de limite é bem representada no fenômeno da piracema – expressão tupi que significa subida dos peixes. Ali os valentes ectotémicos lutam pelo direito de existir enquanto espécie, e ao vencer a força da natureza se inscrevem na gramática da vida. Já na sociedade, a noção de limite é bem expressa a partir da ideia de classe trabalhadora a lutar por seu sustento, sobretudo quando se considera no horizonte uma economia doentia focada nos poderosos.
No momento seguinte ao limite, ocorre aquilo que convencionamos chamar de rompimento. No imaginário coletivo essa percepção emerge como uma condição de crise. Sentido pela qual a crise não pode ser vista como algo ruim, apesar de dolosa. Mas é a tradução da própria expressão do novo, como bem atesta L.Boff no seu livro a Grande Transformação. Para o autor, a crise é em primeira instância, sinônimo de purificação que igualmente pode induzir a purgação, traduzida naquilo que supera algo e tem sua apoteose na catarse.
Nesse sentido, a ideia de limite pode ser bastante útil para estabelecer compreensão entre os limites do contrato natural, aqui pactuado pela noção de ecologia, e o contrato social assentado na possibilidade da reciprocidade. Por isso, a vida se estabelece entre os limites máximos e os mínimos, para ajustar-se à expressão matemática, mas avança a um simples combinado de números racionais. O que nos interessa saber nesse momento é que a crise tem a potência de revelar o limite de algo ou alguém, razão pela qual apresenta em si a transmutação da criatividade e da oportunidade para se estabelecer no âmago da coisa nova, do rebento possível que acabará por renascer.
Para efeito didático, a noção de limite atravessa a humanidade a partir de elementos histórico/social e, sobretudo, ecológico, sempre a se impor materialmente sobre o cotidiano. Estabelece-se aí o maior limite entre os extremos a romper barreiras entre o ideal e o possível, entre a arte e a matéria, entre a pobreza material e a justiça social. Espaço em que a solidão é vencida de forma solidária, e o teatro da vida se refaz para ir ao encontro do seu limite, até topar com seu infinito e dar-se novamente ao novo limite.
Ao analisar a sociedade atual, é possível perceber que esta vive o limite da sua crise civilizatória. Num extremo está a possibilidade do contrato social e no outro, o necessário contrato natural. Ambos têm entrado em crise desde o advento da máquina a vapor. O capitalismo moderno tratou de refiná-la impondo o limite do acrisolamento. Isso fez com que fossem reduzidas todas as possibilidades da mudança a se estabelecer o reino do contrato social sem ética, sem espiritualidade e, sobretudo, sem qualquer relação com a natureza. A onipotência humana se impôs enquanto mediação e a questão ambiental deixou de ser um bem, passando a figurar como recurso. Sob o ponto de vista gramatical, a noção humana de meio ambiente passou a ser mais concebida a partir da conotação adverbial “metade” do que com seu aspecto substantivo originário a conotar algum tipo de qualidade.
Nessa trama, por exemplo encontra-se um cenário limite, em que convivem poucos bilionários, cada vez mais ricos durante a pandemia, e a outra parte jogada na extrema condição da pobreza. Esses limites reconhecem toda sorte de desigualdade econômica, negação de direitos e acesso às garantias de vida digna. Enquanto nega-se água potável, escolas, hospitais, vacinas, é abundantemente ofertada fome, medos e prisões a reproduzir misérias e nelas a potencialização da crise. A guerra e o mau funcionamento da economia estão a gerar pobreza e fome para quase dois terços da população mundial. Essa realidade naturaliza o fato de apenas 174 empresas controlarem 40% da economia mundial; romantiza o dado apresentado pela OXFAM de que apenas 2 mil bilionários têm a mesma riqueza que 4,6 bilhões. Normaliza o fato de que a cada 5 segundos uma criança morre por causas perfeitamente evitáveis. Quando considerada apenas as 300 pessoas super-ricas, sabe-se que elas acumulam a mesma riqueza que 3 bilhões de pessoas.
Em linhas gerais, isso não pode ser uma boa economia, pois os dados revelam que ela está baseada na manutenção da miséria e da pobreza. A economia da morte, bem denunciada pelo Papa Francisco, vive feito um vírus a sobreviver do próprio sistema que lhe dá vida. No fim, ambos sucumbem.
No caótico cenário brasileiro entramos no limite dos mínimos sociais. Vivemos tempos difíceis, mediados pelo medo. Os números não param de piorar. A fome já grassa sobre 19 milhões de pessoas. Metade dos brasileiros não tem garantias de se alimentar, 6 milhões de pessoas estão desalentadas, 14,6 milhões desempregadas, e boa parte do meio milhão de mortes que sucumbiram à covid-19 poderiam estar entre nós. Sabe-se que 52,7 milhões de brasileiros(as) estão em condição de pobreza ou extrema pobreza. Em síntese, a política da miséria projetada por Bolsonaro, e sustentada pelo bolsonarismo, não para de tramar contra os pobres, e isso ocorre sob as bênçãos de algumas lideranças pseudocristãs a confundir mentes inocentes acrisoladas na religião do apego e do ódio. Aqui o limite do contrato social está dado, e já não pode mais responder ao limite do contrato ecológico.
Contudo, é preciso apontar para os limites máximos da possibilidade da crise. Aquela que revela a oportunidade da purificação. Talvez, seja preciso um rápido exame de consciência para perceber que precisávamos conhecer o fundo do poço para fazer emergir a possibilidade do novo. Nesse sentido, bem lembro a poesia de Belchior para quem “o novo sempre vem”. Essa mentalidade guarda em si a tarefa de arrebentar os planos do mal, de refazer as incertezas e se apresentar no esperançar enquanto verbo freiriano. Para os religiosos, é bom lembrar o credo católico, e metaforicamente recobrar que Cristo “desceu à mansão dos mortos” para dali ressuscitar à vida eterna.
Aqui a rebeldia parece necessária para permitir a possibilidade de um projeto coletivo pactuado pelas diferenças, reinventado pelas periferias físicas e existências do mundo, lá aonde ocorre a própria possibilidade da plenitude da vida. Um projeto que promova o encontro adiado entre ecologia e economia, e que estas possam ser observadas como expressões essenciais a vida.
Finalmente, precisamos fazer o difícil caminho da crise até encontrar o limite da purificação. Esticar os horizontes das possibilidades. Reencontrar a essência perdida na política, reinventar os critérios éticos dos nossos limites. Em outras palavras, é preciso fazer a piracema civilizacional até superar nossos limites para a que a vida se estabeleça novamente.
Por Rafael dos Santos da Silva
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra-PT
Professor UFC