“Pancada de vara não faz caju ficar maduro”, Leonardo Mota – “Adagiário Brasileiro”, Itatiaia, Belo Horizonte, 1987
Não teria sido por irresistível ímpeto patriótico que a demolição da Bastilha houvesse começado dois dias após a Revolução : o povo nas ruas, gritando a vitória conquistada com aquele gostinho de desforra por tantas humilhações sofridas e revoltas frustradas. Pierre-François Palley, influente empreiteiro de obras públicas, tendo obtido a designação de demolidor oficial da temivel prisão, onde morreram afogados em sua “oubliettes” criminosos comuns e perseguidos politicos, iniciou os trabalhos de demolição com presteza. Não sem, antes, autoproclamar-se “O Patriota”, condição à qual o cidadão Palley associou, com raro talento, lucros desmedidos e ideais revolucionários ardentes.
Menos de um século transcorrido, quando ainda ainda se condenava, no Brasil e em outras Cortes europeias, o caráter criminoso do regicídio praticado contra os reis de França, no Ceará provincial, ocorreria episódio insólito, não que pudesse ser visto como improvável, dados os hábitos politicos e suas práticas correntes, mas pela banalidade como a autoridade exercia os seus largos poderes.
Tendo Clóvis Beviláqua, jovem iniciante nos caminhos das leis e da justiça, pleiteado o cargo de promotor público ao presidente da Província do Ceará, Domingos Antonio Rayol, teve seu pedido rejeitado, sob o argumento de que a promotoria não estava vaga, já que ocupada por um leigo, rábula cujas habilidades eram, aparentemente, muito apreciadas. O jovem Clóvis, noviço nessas árduas questões de relacionamento das “redes de sociabilidade”, recorreu da decisão amparado na lei: o cargo era privativo de advogados, a menos que não os houvesse disponíveis.
Domingos Rayol era homem de ligações ponderosas no Império, governara o Pará, as Alagoas e São Paulo. O despacho final ao recurso encerrava a milindrosa controvérsia : o cargo de promotor de Aquiraz era ocupado por pessoa “distinta”, e ponto final.
O que apresentam em comum os dois episódios, tão distantes no plano temporal, mas tão próximos pelas suas causas inspiradoras? O compadrio, certamente, alimento das alianças do poder; a relação incestuosa entre o público e o privado; a fragilidade da representatividade e a natureza dos mandatos politicos, diagnóstico sucinto de causas múltiplas e abrangentes.
A nossa história política, o quotidiano de suas íntimas relações e compromissos, nem sempre exemplares, dão-nos a visão de um conluio organizado de forças e interesses muito pouco comprometidos com a natureza, os deveres do Estado e o equilíbrio e justeza das ações de governo. Não é de agora, não é vezo recente a ação concertada dos governos contra o Estado, tampouco a indiferença que lhes inspiram a nação e a sociedade.
Em face dos momentos de paixão e árduas disputas políticas, a nossa índole “pacificadora” têm-nos levado a acordos e tentativas de conciliação, a arranjos e convergências custosos, menos para governos e governantes. O que se intenta agora, mediante diálogo entre mediadores pouco acreditados por suas intenções reais, faz lembrar episódios esquecidos nos desvãos da História.
O Visconde de Paraná e os “homens novos”
Movido pelo espírito de conciliação e levado pelas propostas reformistas que não encontravam guarida no governo Imperial, o Visconde do Paraná propôs-se (1853) organizar um Gabinete com “homens novos”, como os chamou José de Alencar. Pretendia Paraná aproximar os setores moderados dos liberais junto ao governo, afastando desse meio os mais radicais, bem assim neutralizar a ala extremada dos conservadores.
Para José Honório Rodrigues, o espírito anti-reformista “dominou nossa história formal e a conciliação formal, partidária, visava a romper o círculo de ferro do Poder, para que as facções divergentes, os dissidentes pudessem dele fazer parte”. A conciliação buscada pelo Visconde de Paraná apresentava-se como uma forma de “representação das minorias”. Não se tratava da construção de uma “base aliada” para a aprovação de projetos governamentais, mediante a retribuição de benefícios e oportunidades de cargos no governo, muito menos de outras formas de compensação no molde bem talhado de “comissões” e propinas, em operações triangulares com empresas prestadoras de serviços ao poder público.
Para Capistrano de Abreu, entretanto, o adjetivo “conciliador”, que justificava a conversão de velhos antagonismos politicos, era um “termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época”. O Gabinete do Visconde de Paraná durou quarto anos, e se as reformas anunciadas não foram levadas a termo há de ter sido pelos desvios tortuosos que a política segue, segundo os caprichos dos homens e ao seu apego ao poder.
A esses “homens novos”, jovens politicos conservadores (José Thomas de Nabuco de Araújo, José Maria Paranhos (Visconde do Rio Branco) e Francisco Ignácio Carvalho Moreira (Barão de Penedo), tomados pelo espírito de reforma, opunha-se, a prática recorrente das “carretilhas”, estratégia cultivada pelas velhas lideranças conservadoras.
Ao contrário dos propósitos dos “homens novos”, as “carretilhas” dos conservadores contrapunham às reformas e mudanças prometidas a lentidão dos procedimentos legislativos e da burocracia governamental, adiando medidas apresentadas e aprovadas aos poucos.
Paradoxalmente, alçados ao poder, os “homens novos”, nos postos da governação imperial, cedo adotaram o mesmo ritmo de procratinação das reformas; e o fizeram por meio de “carretilhas”, no passo lento das coisas sem pressa.
No olho do furação da crise que se abateu sobre nós, vemo-nos divididos entre os “homens novos” invisíveis aos nossos olhos, utopia que nos sensibiliza e engana, e a vontade de romper com práticas politico-partidárias envelhecidas, porém sempre recorrentes, as “carretilhas”, que ocupam os discursos, a ação parlamentar e as decisões de governo, exercitadas pelos politicos profissionais, escorados nas vantagens das recompensas do adesismo de oportunidade. A imagem dos “homens novos”, dos que vêm para garantir a salvação dos costumes e as mudanças dos hábitos politicos, projeta-se no espelho das nossas incongruências como contrafação às “carretilhas”, animada pelas conveniências que fazem rodar as engrenagens da burocracia e dos acertos de interesses. O discurso político é a antítese, a negação dos propósitos reais do ator politico, dos agentes do poder. Sem que soubéssemos, praticamos por aqui a “pós-verdade”, desde tempos idos e com ela transformamos eleições, a representação e o mandato em pura ficção que o tempo transforma em realidade e prática usual.
Referências:
Capistrano de Abreu – “Fases do Segundo Império”, Rio de Janeiro, Briguiet, 1969;
José Honório Rodrigues – “Conciliação e Reforma no Brasil”, Civilização Brasileira, 1965;
Gizlene Neder – “As reformas políticas dos homens novos”,Editora Revan, Rio de Janeiro, 2016