Os dois gigantes têm os pés de barro

Os dois maiores PIBs mundiais, dos Estados Unidos e da China, assentam-se sobre bases inconsistentes. Ambos têm dívidas públicas e privadas incompatíveis com seus respectivos PIBs que ora se encontram em franca desaceleração de crescimento econômico em face de dois fatores básicos: a perda da capacidade aquisitiva da população mundial e o limite humano da capacidade de consumo.

A perda da capacidade aquisitiva da população mundial é provocada pela queda global de renda graças à redução do volume de valor da extração de mais-valia mundial, e ocorre em razão de um fenômeno causado pela terceira revolução industrial da microeletrônica que racionalizou procedimentos e substituiu o trabalho abstrato produtor de valor em maior proporção na produção de mercadorias e serviços do que os novos nichos de trabalho abstrato por ela mesma criados.
O desemprego estrutural na terceira revolução industrial da microeletrônica provoca a perda total de salário, e sem o dito cujo, por mais que as mercadorias percam valor e preço (que são coisas diferentes, vez que valor é salário médio coagulado no custo de produção de mercadorias, e preço é circunstância de mercado), o desempregado nada pode comprar.

O limite se refere ao fato de que o ser humano, mesmo quando tem maior capacidade aquisitiva de poder de compra (e é cada vez menor o número per capita dos que estão nesta situação), não almoça mais de uma vez por dia, e nem usa mais de um sapato por vez.

​Na terceira revolução industrial da microeletrônica atingimos o ponto que Karl Marx previra nos Grundrisse há 165 anos.
Disse ele que quando houvesse substancial substituição do trabalho abstrato produtor de valor (capital variável) pelas máquinas (capital fixo), que assim reduzem o custo de produção das mercadorias, mas reduz, pari passu, a massa de mais-valia produzida por tal lógica, toda a engrenagem capitalista e sua forma de relação social implodiria.

​Trata-se do fenômeno da autodestrutibilidade da relação social capitalista quando atinge o ponto de contradição irreversível entre forma e conteúdo. O processo é historicamente lento, mas irreversível.

​A microeletrônica viabilizou e introduziu todo o sistema de robotização computadoriza; comunicação instantânea via satélite; e programação por algoritmos (definidos como procedimentos matemáticos altamente precisos e eficientes, não ambíguos, e padronizados) na produção de mercadorias.

Tal fenômeno alterou profundamente a lógica de produção mercantil, criando um impasse entre:
– a forma-mercadoria, modo de produção desenvolvido substancialmente a partir da mercadoria trabalho abstrato remunerado pela mercadoria dinheiro, ambos produtores de valor abstrato (riqueza abstrata, valor econômico das mercadorias);
– e o conteúdo da mediação social na qual tudo se mede ou somente se faz a partir de tal critério (a vida social se circunscrevendo ao ato de ganhar dinheiro para provê-la gastando dinheiro e da restringente viabilidade econômica mercantil).

​Ganha a guerra concorrencial de mercado quem produz melhor e a custos mais baixos neste confronto épico entre coisas inanimadas que ganham vida (as mercadorias) obtendo-se os lucros daí advindos concentrando riqueza abstrata, mas reduzindo a massa global de valor.
O desenvolvimento tecnológico aplicado à produção de mercadorias nos setores primário, secundário e terciário da economia corresponde ao apogeu e declínio da relação social capitalista e decreta o seu fim irremediável.

​A contradição da lógica capitalista que é fenômeno histórico, com data de nascimento, vida e morte, diferentemente do que pensam os desavisados que entendem que o dito cujo é dado ontológico da nossa existência, tal como a água o é, explicita-se de várias formas demonstrando a sua finitude.

Outra delas, exógena, que citamos en passant, é o aquecimento global provocado pela emissão de gases na atmosfera, que os países capitalistas teimam em preservar em obediência às ordens ditatoriais do capital, num ecocídio planetário.
O capital, além de ditatorial, é autodestrutivo, socialmente destrutivo e tem uma pulsão de morte que o torna genocida.

​Assim, Estados Unidos e China disputam hoje a hegemonia econômica como pretensos herdeiros de um espólioque caminha para a falência inexorável. Vão morrer abraçados e colocam em risco a vida de toda a humanidade.

​A China vem desenvolvendo um programa de financiamento a diversos países e em vários continentes num programa parecido com aquele desemprenhado pelo Fundo Monetário Internacional que hoje é chamado de “nova rota da seda”, sem, entretanto, exigir os ajustes fiscais tradicionais aos países endividados.

​A amplitude dos financiamentos externos chineses é ambiciosa e se situa em torno de US$ 838 bilhões, que a coloca como maior credor bilateral do mundo num programa de promoção de desenvolvimento aos países emergentes ou em desenvolvimento. A estratégia chinesa tem como objeto a consolidação de influência econômica no Sul do Globo, particularmente no Sul da Ásia, na África e na América Latina.​
​A competição pela hegemonia com os Estados Unidos, que desde o final da segunda guerra mundial se estabeleceu na Conferência Monetária Internacional de Bretton Woods, como potência financeira capaz de financiar o plano Marshall de reconstrução da Europa devastada pela guerra (que hoje corresponderia a US$ 100 bilhões, e bem menor que os empréstimos da “rota da seda”), é flagrante e visa obter rendimentos de juros e comércio, tal qual fez e faz o seu competidor da América do Norte.
​Ao leitor desavisado pode parecer que a China vive uma situação de comodidade a ponto de poder financiar a infraestrutura dos países tomadores dos seus empréstimos, bem como abrir espaços comerciais para os seus produtos. Lucros financeiros e influência comercial estão na base desse comportamento de país governado por um partido dito comunista (é mole?).
​Mas a aparência das coisas costuma enganar quem as vê, diz o sábio dito popular.
​A China tem uma dívida pública e privada da ordem de USS 51,7 trilhões de dólares (cerca de 300% do seu PIB anual) para com o sistema financeiro internacional, e os financiamentos que oferece aos países do Sul Global não passam de repasses diminutos de sua própria dívida.
A China toma emprestado para emprestar com juros diferenciados para obter lucro e influência com a operação, mas o que a China empresta é apenas 1,5% do que ela deve, e o que parece ser solução tem se tornado problema.

É que a crise econômica que se abateu sobre o mundo e agravada pela pandemia da covid19, tornou muitos países inadimplentes dos empréstimos chineses e tiveram que ser socorridos por mais empréstimos sob pena de se tornarem insolventes.

​ O Financial Times divulgou a informação que somente os três maiores devedores de Pequim – Paquistão, Sri Lanka e Argentina – receberam pacotes de resgate no valor de 32,8 bilhões de dólares desde 2017. A lista de países que tiveram que ser estabilizados por Pequim através de empréstimos de crise inclui Quênia, Venezuela, Angola, Nigéria, Laos, Belarus, Egito, Turquia e Ucrânia, e com redução forçada das taxas de juros.

​Mas os problemas chineses não param por aí.

​A China tem uma séria crise no setor imobiliário que representa de modo direto e indireto cerca de 29% do PIB chinês.
A crise imobiliária chinesa se evidenciou com os problemas de inadimplência da gigante Evergreen, que acumulou dívida de US$ 300 bilhões e esteve à beira da falência no verão de 2021 sendo socorrida pelo Estado chinês via o que chamaram de “programa de restruturação”, que nada mais é do que a injeção de dinheiro impresso nas gráficas do Banco Central sem nenhuma correspondência com o que se convencionou chamar de “valor válido” (dinheiro respaldado pela produção de mercadorias que criam valor).

​Cerca de 1,5 milhões de compradores chineses ficaram à espera de receber casas que haviam sido pagas e estavam com obras semiparalisadas nos canteiros de construção.

Este mesmo procedimento ocorreu com a crise imobiliária do subprime dos Estados Unidos de 2008/2009, que diante da iminência de um crash do setor financeiro daquele país com consequências mundiais, foi socorrida pelo Federal Reserve que injetou cerca de USS 14 trilhões (cerca de 26% da dívida chinesa), com a emissão de dólares sem valor válido, providência que tem sido, em boa parte, a causa da alta inflação estadunidense (9,1% de junho de 2021 a junho de 2022, uma das mais altas dos últimos 41 anos).

Um estudo feito pelo economista estadunidense Kennet Rogoff informa que há incompatibilidade de preços entre as unidades habitacionais populares chinesas (conjuntos habitacionais populares) e o padrão salarial chinês.

São necessários 3 anos e 4 meses para que um trabalhador chinês consiga juntar o valor de uma casa. Ora, se se considerar os gastos pessoais e familiares dele, fica impossível para ele, em tal período, fazer a aquisição da casa própria. Se se ele gastar 10% do seu salário com moradia, levará 33 anos para pagar a hipooteca. Quando se acresce a isso os juros de mercado da dívida (que é o que se pratica por lá), fica fácil de se deduzir a paralisia e crise do mercado imobiliário inflacionado pela bolha imobiliária chinesa.

No Brasil um trabalhador de renda mensal de R$ 2.000,00 levaria 4 anos e 2 meses para a mesma operação, ou seja, se considerarmos as despesas pessoais e os altos juros praticados no Brasil, há uma equivalência de impossibilidade aquisitiva e miséria tanto aqui como no país do segundo maior PIB mundial.

Não é por menos que existem hoje verdadeiras cidades fantasmas de conjuntos habitacionais na China à espera de quem compre e pague os custos e valores das unidades habitacionais vazias.

Recentemente houve confrontos entre a polícia e correntistas de banco na província de Henan, na China Central, em razão do congelamento de contas bancárias. Da mesma forma o Partido Comunista da China teve que enfrentar uma greve de suspensão do pagamento de hipotecas imobiliárias em face da não entrega de unidades habitacionais.

O vertiginoso crescimento do PIB chinês baseado em alta taxa de endividamento externo e salários baixos encontrou o seu ponto de limite de expansão na saturação do mercado exterior comprador que não cresce ad infinitum, mas dentro da capacidade de consumo humano, como dissemos.

O capital tem necessidade de crescimento constante (ad aeternum) como força motora sem a qual perde credibilidade e se invalida como forma de relação social minimamente viável. Os limites antes referidos referem-se ao ponto de perda dessa força motora do capital.

Mas a crise chinesa se soma a outros componentes conjunturais como:
– a crise mundial do desemprego estrutural mundial que citamos (quando escrevemos este artigo o Reino Unido, outrora a império onde o sol nunca se põe, está enfrentando a mais grave onda de greve desde a segunda guerra mundial, e o carro chefe é a previdência social deficitária);
– protecionismo estatal de muitos países contra a importação de produtos chineses que roubam os empregos nacionais;
– o aquecimento global que torna improdutivas imensas extensões territoriais e causa desastres climáticos genocidas e destrutivos graves (o terremoto da Turquia e Síria, de 7,8 pontos da escala Ritcher, terá sido intensificado por isto?; as chuvas torrenciais de São Paulo e Rio de Janeiro de ainda hoje serão naturais e tradicionais?)).

A resultante disso é que caem as reservas cambiais chinesas que segundo o Financial Times decresceram de US$ 4 trilhões para US$ 3 trilhões nos últimos anos.

Assim, a soma de tantos problemas internos e externos faz com que o capitalismo chinês projetado por Deng Xiao Ping em 1976, que tornou a china dita comunista no país praticante do mais selvagem e predador capitalismo mundial (as emissões de CO² da China são criminosas), já se fazem sentir em manifestações populares de grandes dimensões por lá.

A pretendida hegemonia do Globo Sul pela China e sua “nova rota da seda” esbarra na impossibilidade de criação de um novo (mas num conceito antigo) bloco sob seu comando e influência vez que os seus problemas internos se comunicam com problemas externos insolúveis sob a lógica do capital.

São os próprios Estados Unidos, líder mundial do ocidente desde o fim da segunda guerra mundial, e detentor de moeda universal, quem também vê faltar terra sob seus próprios pés com seus desequilíbrios constantes na balança comercial, e como credor maior da China, sabe que o resfriado por lá pode causar pneumonia grave por cá.

O capitalismo global implodirá a partir do crash concomitante das duas maiores potências econômicas mundiais e demais componentes do G7, e a nós caberá contarmos com nós mesmos e demais países pobres do mundo integrados a uma nova ordem mundial de solidariedade sob um novo modo de produção social e ordem jurídico-constitucional como modo de superação do impasse e continuidade da vida humana.
Se der tempo…

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;