O xadrez do dia do pesadelo, por Luis Nassif

Independentemente do resultado da votação do impeachment, a jovem democracia brasileira ingressa no dia da vergonha, pela mera possibilidade que abriu de se tirar uma presidente do cargo atropelando a Constituição.

Como chegamos a isso

Há um conjunto de fatores a serem elencados.

O mais relevante foi a incapacidade das forças políticas nacionais – governo e oposição – entenderem a natureza das transformações ocorridas na última década.

A economia tem uma visão mecanicista da história. Os economistas analisam a história como um processo cumulativo, uma série estatística que ignora as grandes mudanças estruturais.

Entendem melhor os processos os analistas que vão buscar na física ou na química o padrão de análise. Tem-se um determinado corpo. Muda-se uma molécula. A molécula altera o funcionamento das todas as demais, resultando dai uma realidade inteiramente nova.

As mudanças sociais

Foi o que ocorreu com a inclusão de 40 milhões de pessoas saídas da linha da miséria, outros tantos milhões que passaram a ter acesso ao ensino técnico ou às universidades. Da nova realidade nasceram novos cidadãos em tudo diferente do que eram anteriormente, com novas demandas, novos princípios, novas inquietação, agora não mais a superação da fome, mas o espaço para manter o crescimento.

Alguns estudos da época indicavam o novo caminho, mas ninguém pensou que as transformações pudessem ser tão rápidas. Era ilusória a ideia de que os novos incluídos manteriam uma relação de gratidão com o partido e o governo que asseguraram a inclusão.

Estimulados pelas redes sociais, pelo tráfego intenso de informações e conceitos, a nova geração nasceu confiando no próprio taco e jogando toda sua energia nas novas possibilidades que lhes foram abertas.

A pulverização partidária

Era hora de se adaptar partidos e governos aos novos tempos, criar o discurso e as bandeiras para a nova realidade.

Nem governo nem oposição foram capazes.

Mais ainda, no momento em que as redes sociais ampliavam geometricamente as expectativas de participação, o sistema político brasileiro se fechou, preso a uma gerontocracia dos principais partidos, que não quiseram abrir mão de poder, com uma legislação que facilitava a pulverização partidária.

O próprio Lula tornou-se vítima da armadilha do sucesso total.

As grandes transformações são facilitadas por momentos de bonança. Mas, nesses momentos, a praga da visão de curto prazo impede qualquer mudança, para não colocar em risco o sucesso.

Foi assim que se foi empurrando com a barriga a reforma política, permitindo a multiplicação dos partidos, aumentando a dificuldade da montagem de pactos e, por errs políticos sucessivos,  permitindo a formação de bancadas na Câmara que acabaram levando as rédeas aos dentes.

A perda do discurso unificador

O que garante a solidez de país é um Executivo forte, com um discurso legitimador. É o discurso, a perspectiva de médio prazo, que amarra o poder político e a unificação das ações na área pública.

O mensalão provocou uma devastação nos quadros principais do PT, levando Lula a escolher Dilma Rousseff para presidente. Tinha-se, de um lado, uma presidente sem experiência na baixa política – que garante a governabilidade -, na alta política – o manejo do imaginário nacional -, e no uso das ferramentas de poder de que dispõem o presidente.

Do outro, um partido em crise, incapaz de desenhar um novo projeto nacional, e duramente marcado a ferro em brasa pelo julgamento do mensalão.

No início, esse modelo capenga foi sustentado pelos resquícios de crescimento, vindos da recuperação histórica da crise de 2008 – na qual Dilma teve papel relevante. Quando a economia começou a balançar, influenciada pelos ventos externos, Dilma perdeu o rumo.

Desse momento valeu-se a grande mídia para estimular a mais deletéria campanha de destruição da autoestima nacional –para poder se contrapor ao momento gigantesco de autoestima em alta que a antecedeu.

O momento máximo foi na Copa do Mundo, um trabalho tão pertinaz de destruição do sonho, que conseguiu até eliminar as bandeiras e uniformes das ruas das principais capitais.

Na cabeça de seus leitores uma Copa impecavelmente bem organizada foi transformada em desastre nacional.

Com o início da crise, a perda do discurso legitimador, a impaciência para as pequenas negociações políticas que garantem a governabilidade – e uma teimosia fatal -, o governo Dilma foi sendo corroído.

E, aí, apareceu o terceiro problema: o poder das corporações públicas.

O reinado das corporações

Valendo-se dos tempos de bonança facilitados pelo boom dos commodities, Lula pensou o país de forma integral. Ao lado das políticas sociais, estimulou a expandão dos grandes grupos nacionais, a multiplicação das universidades públicas, as novas políticas tecnológicas, e o fortalecimento do setor público – depauperado no período FHC.

Melhorou os salários, conferindo um status econômico ao emprego público e, em muitas áreas, garantiu o profissionalismo e a blindagem contra aparelhamentos. O aparelhamento ocorreu em áreas periféricas ou em cargos comissionados.

O Estado passou a contar com uma nova geração de funcionários, cujo salário inicial, passando no concurso, superava os R$ 15 mil mensais – muito mais do que receberiam, na fase inicial, em qualquer emprego privado.

Junto com o status econômico veio o status político. Jovens advogados e procuradores do TCU (Tribunal de Contas da União), auditores da Receita, advogados da União, procuradores da República empenharam-se em uma luta por mais e mais condições salariais.

De um lado, jovens ambiciosos e bem preparados tecnicamente. De outro, um Congresso com o pior nível da história. No meio, um governo perdido, sem entender as nuances mínimas do poder. Nas pontas, políticas sociais abrindo alguma forma de protagonismo aos movimentos sociais. No topo, uma elite jurídica – nos tribunais superiores e no Ministério Público Federal (MPF) – a exemplo da própria Presidente da República, também incapaz de entender os novos tempos e se considerar como coparticipante da estabilidade política e legal do país.

Tudo isso poderia ter sido canalizado para uma oposição minimamente aparelhada para apresentar um projeto alternativo. Mas o que se via era apenas a vendeta de FHC, um político mesquinho, velho de alma, uma alma dura como pão mofado atrás de sua vendeta eterna com Lula.

Assim, o amálgama que juntou todos foi o ódio, o preconceito, o urro animalesco que tomou conta das ruas durante algum tempo.

O fator Lava Jato

Em cima dessa instabilidade aguda entra o fator Lava Jato e o Procurador Geral da República comportando-se como aprendiz de feiticeiro.

Abriu a caixa de Pandora da opinião pública, sem ao menos avaliar as consequências políticas.

Foi o fator final, o mote central da maior crise política do pós-redemocratização, que deixa o país a um passo de ser controlado pelos próprios réus da operação.

A irresponsabilidade se manifestou desde o primeiro momento, com o anúncio de centenas de parlamentares suspeitos e a blindagem de alguns nomes centrais da oposição – como Aécio Neves. Deixaram-nos pairando no limbo, mas preservando os poderes no Congresso e vendo a presidência sendo corroída diariamente pelo noticiário alimentado pela Lava Jato.

Some-se a incapacidade + temor do STF, fugindo da análise de situação e tratando a questão atual com as lentes da normalidade. Adiaram até hoje o julgamento de Eduardo Cunha para não criar o precedente de um conflito entre poderes que poderia criar uma instabilidade institucional futura.

Um álibi convencional para a menos convencional das situações políticas da história: o país à mercê do mais suspeito e atrevido dos parlamentares brasileiros.

A defesa da democracia

E a quem cabe a defesa da democracia?

Aos jovens, aos pobres, aos negros, aos artistas, poetas cantando a democracia. É o o máximo a que um país pode aspirar de nível civilizatório.

O fato dos de baixo entenderem a democracia como valor maior, como possibilidade, como oportunidade, é o ponto central da consolidação civilizatória de um país. São eles que saíram à rua para defender uma conquista, pressentindo os dias sombrios que se sucederiam a uma queda da democracia.

Na outra ponta, o grupo de Eduardo Cunha, a Força Tarefa da Lava Jato, o Procurador Geral da República, as novas corporações públicas enaltecendo seu poder, exibindo a musculatura em uma aliança dantesca e irreal, estimulada por uma organização de mídia, a Globo, sem limites.

Daqui a pouco o país passará pelo maior desafio da sua história moderna.

Caindo o impeachment, retoma-se o processo civilizatório, buscando-se o grande pacto nacional, convencida a presidente que não foi uma vitória pessoal dela, mas da nacionalidade.

Passando o impeachment, haverá dias de pesadelo, conflitos, instabilidade. Mas será por algum tempo. Haverá uma dura autocrítica nacional, um acerto de contas com a história por parte dos principais protagonistas do golpe, e um aprendizado rápido sobre as consequências de se brincar com a planta tenra da democracia.

(Texto originalmente publicado em www.jornalggn.com.br)

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