O REENCONTRO PREGUIÇOSAMENTE ADIADO

A nossa maior insegurança, neste encontro inesperado com o “caráter” do Brasil profundo, decorre das nossas hesitações, da inépcia, da incapacidade de encararmos os nossos problemas, de uma cultura dominada pela persistência de instintos primitivos e de um açodamento inconsequente pela busca da modernidade, seja ela qual for. Fomos plantar nossas raizes em um passado do qual somente parte dele nos interessa.

Queremos ser modernos, porém pregados a uma ancestralidade histórica na qual encontramos a fonte inspiradora da nossa revolta contra o colonialismo, contra a branquitude discriminatória e dominadora. Até os nomes de origem africana e indígena passamos a incorporar ao patronímico de uma duvidosa herança lusitana , afro-ascendente e ameríndia… Como se no Brasil não pertencêssemos a uma confusa miscigenação de etnias mal identificadas. Até já passamos a condenar a miscigenação como mostra de um passado vergonhoso.

Gilberto Freyre andou a mexer nesse balaio de contradições e mostrou, em estilo elegante, do qual se ressentem os cientistas sociais saídos da academia, com tanta teoria recolhida e tão poucas letras. Seria inevitável, Gilberto caiu em desgraça pela leitura que fez do que em cinco séculos preguiçosos construímos por aqui.

Deu-se mal por não ceder aos dogmas teóricos marxistas que nos perseguem deste o advento do Estado Novo getulista. Sequer usou a linguagem simplificada das palavras que servem de arrimo aos mantras do socialismo brasileiro e da historiografia brasileira. Foi o bastante para que os intelectuais paulistas deplorassem a falta de ciência de Gilberto Freyre. Não faltou quem sentisse nas páginas dos seus livros o odor neoliberal, quiçá fascista do seu pensamento provinciano de Apipucos.

Pois bem. Defrontamo-nos, mais que de repente, com as nossas fragilidades crônicas. Um país em atabalhoado processamento histórico, cravado em um sistema político (se é que podemos chamar assim a morada de oligarquias de raiz) por construir. Com uma economia a tomar corpo por contra própria, com muitas incertezas e privilégios disseminados. Uma cultura que valoriza a pobreza e anatematiza as criaturas bem sucedidas. A pobreza crescente e os ricos com os seus patrimônios em rápida multiplicação, à falta de uma bula com instruções terapêuticas para conter essa expansão desequilibrada.

Mal saídos de uma tragédia pandêmica com milhares de vítimas e sérios gravames de monta na economia, sofremos com o rescaldo da divisão da nação dos brasileiros, por conta de eleições condicionadas por transtornos éticos e desvios de conduta política cujo desdobramento nos anos recentes ameaçam severamente a democracia.

Separados por ideias mal esclarecidas, convencidos por falsas evidências, no momento crítico de uma mudança de governo, defrontamo-nos com o esgarçamento das instituições e a quebra de pressupostos constitucionais dos quais até há pouco nos orgulhávamos.

O governo de qualquer país não é exercido aos pedaços, com a nação, o povo e a sociedade divididos. Ao governo e às forças políticas mais representativas não se perdoaria que, por estratégia eleitoral ou ideológica, nos terrenos da fé ou das armas, que essas divisões internas fossem aprofundadas, sem que se tentassem alternativas de convivência e os desafios de construção nacional, se a estes propósitos mínimos podemos reduzir as nossas aspirações.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.