O que vale uma vida? Por Luana Monteiro

“Antes eu não entendia por que não recebia nenhuma resposta à minha pergunta, hoje não entendo como podia acreditar que era capaz de acreditar. Mas realmente não acreditava, só perguntava” (Kafka).

 

Ultimamente, tenho pensado no valor que tem e que atribuímos à vida. Afinal, toda vida é imprescindível e deve ser preservada? Se não, a quem cabe o papel de seleção e de separação de válidas e não válidas?

No Brasil, cotidianamente, muitas vidas são findadas. Ontem mesmo ouvi no jornal a notícia de que outubro dava mostras de ser o mês mais violento do ano que ainda nem acabou. Acredito que uma força instigadora do ódio, sentimento capaz de mobilizar cinco vezes mais um indivíduo do que a empatia, se alastra com toda sua robustez.

A questão é: muitas pessoas morrem, mas parece que tais “ex-vidas”,  se produzidas a partir de um discurso que as justifiquem, deixam de ser vistas socialmente como crimes, e passam a ser ressignificadas como justiça social.

Não é loucura ou desajuste o que meus olhos podem ver nos noticiários. Uma coisa é clara, o humano já não o é mais. Ele é uma possibilidade de sê-lo, e a desumanização bate à sua porta.

Estremeci ao ver o caso da estudante em Fortaleza que, depois de uma série de ameaças à sua integridade física, foi estuprada. O agressor, pressupondo que lhe fazia um favor, alertou-a afirmando que agradecesse por ele não acabar com sua vida. O motivo: seu posicionamento político era distinto daquele do seu algoz. Mas nós sabemos que essa foi a desculpa que garantiu a ação. Não é, portanto, a sua causa, nem seu pressuposto. A jovem mulher é negra. Vulnerável por dois motivos: ser mulher e negra. Estuda em uma instituição que só passou a ser frequentada por minorias sociais a partir de programas de inclusão criados por políticas públicas. O agressor, imbuído da lógica da “casa grande e senzala” incansavelmente alimentada pelos discursos de ódio, invadiu, feriu, torturou, humilhou o corpo daquela de quem ele se sente superior.

Hoje um amigo reproduziu um comentário que havia ouvido quando falava do caso: “existem tantas prostitutas por aí… essa tá alardeando só porque não foi paga?” A que limite nós chegamos? O que vale uma vida? É o preço da desculpa que se pode criar sobre ela para justificar o verdadeiro crime?

O que antes era só uma agonia, um mal-estar pelo desenvolvimento de uma ideia doentia, já agora é real, é palpável. O medo que sinto da violência não é mais uma ideia, porque já foi personificada. Há pouco vi uma mensagem que dizia: “hoje nasce um novo Brasil”. Não duvidei, é tarde demais para achar que não ia acontecer. Quantas pessoas mais vão ter que morrer para alimentar esse gigante sanguinário que nós vemos surgir diante de nossos olhos?

 

“Antes eu não entendia por que não recebia nenhuma resposta à minha pergunta, hoje não entendo como podia acreditar que era capaz de acreditar. Mas realmente não acreditava, só perguntava” (Kafka).

 

Obs: texto escrito em 29 de outubro de 2018.

 

Luana Monteiro

Cientista social, mestre em Sociologia (UECE) e pesquisadora.