Acreditar que na apuração de votos — pela urna eletrônica, com comprovação impressa ou não — reside o mecanismo central da democracia, explica a distância que nos separa do que seja de fato o “estado democrático e republicano de direito”.
O voto, em um sistema democrático reconhecido pelos que fazem uso dele, é produto de uma longa e persistente elaboração.
De uma relação elementar e primeira de obediência, lealdade e proteção no âmbito da família ampliada, constituída de parentes e de agregados dependentes (Weber). Do mercado de votos ao qual poucos escapam. Dos “colégios eleitorais”, da ação aliciadora dos “cabos-eleitorais”, dos instrumentos partidários e do gerenciamento sobre a aplicação das verbas parlamentares, os cargos públicos — e a mídia, com os seus discretos ineditoriais (os textos pagos por terceiros), os editoriais e o chamado jornalismo investigativo…
Com 32 partidos autorizados e uma fila de aspirantes a um lugar ao sol, com regras fugidias que fazem dos caciques partidários os “donos” das candidaturas e dos eleitos na sigla — o que esperar desta usinagem doméstico-patrimonial que associa famílias políticas a cargos e a generosas comoensações nos braços protetores do Estado?
Quando eleitos, de posse de seus mandatos e no domínio pleno sobre a representação que lhes foi conferida, como se delineia a extensão dos poderes parlamentares do senador, deputado ou vereador? Quais são, a rigor, as suas lealdades essenciais, com os eleitores e com os propósitos anunciados?
A que princípios e interesses políticos atendem as coalizões e frentes partidárias construídas nos convescotes de Brasília e na intimidade com os grandes provedores eleitorais?
Como é criado um partido e como ele se transforma, a mudar de designação e de propósitos? A que associações se submete esta poderosa organização de interesses divergentes dentro do rito e dos regramentos eleitorais?
Como reduzir a legitimidade e a legalidade da “governabilidade” a um feixezinho catódico que aponta o nome do candidato e mostra os votos que obteve?
Se pouco ou nada mudou no Brasil, desde o primeiro Império e da chegada do voto — escritural, em cédulas ou em máquinas — como pode o processo de apuração eleitoral legitimar a etapa que o antecede de “elaboração” do voto e da “votação”?
Admito minhas limitações. Não saberia explicar como ocorre esta diligente transfiguração cidadã — da intenção do voto à sua sua efetiva realização.