O único mito que faz sentido discutir a respeito de Bolsonaro é o que afirma que ele venceu democraticamente a eleição e tem, portanto, legitimidade para governar. Os demais são despropositados e não merecem consideração. Só os idiotas acreditam que Bolsonaro é, em si, um “mito”.
É provável que, em futuro não muito distante, nossos descendentes se espantem com o que aconteceu no Brasil em 2018, como já ocorre hoje com a quase unanimidade da opinião pública internacional. Praticamente tudo que o cânone democrático moderno estabelece para considerar legítima uma eleição foi desrespeitado. A começar por uma de suas exigências fundamentais, de que são democráticas apenas as eleições livres e idôneas nas quais todas as líderanças políticas têm o direito de disputar apoios e votos.
A exclusão de Lula, baseada em decisões jurídicas fortemente contestadas e perpetrada por um ator político comprometido com outra candidatura, foi um absurdo institucional, sem o qual Bolsonaro não teria ganho. Levar Moro para o ministério e sacramentá-lo como pré-candidato na próxima eleição apenas explicita o caráter (ou a falta de caráter)de quem fez o convite e de quem o aceitou.
O veto militar à revisão desse despropósito pelas instâncias superiores do Judiciário, complementada pela proibição de que Lula sequer pudesse se manifestar durante o processo eleitoral, foi um passo adicional na caracterização da ilegitimidade do resultado. A gratidão emocionada de Bolsonaro ao chefe do Exército, reconhecendo-o como responsável por sua vitória, formalizou essa segunda intervenção.
Nem o golpe civil orquestrado por Moro, nem o golpe militar branco confessado pelo ex-ministro foram, no entanto, suficientes para produzir o resultado. Sem outra ilegitimidade, cometida contra o eleitorado, Bolsonaro não teria vencido.
No Gráfico 1, a seguir, podemos ver como foi a evolução das intenções de voto nos candidatos a presidente nas sete semanas que antecederam o primeiro turno. Nele, está a evolução da média das pesquisas de 14 institutos, todos os que registraram levantamentos para divulgação pública.
O conjunto das pesquisas mostra que houve apenas dois momentos de mudanças intensas no processo de tomada de decisões de voto: nas seis primeiras semanas, (isto é, até o início da última), Bolsonaro foi de 20% para 28%, o que deixava incerto que terminasse na frente o primeiro turno; enquanto isso, Haddad, nas duas semanas entre os dias 9 e 23 de setembro, foi de 6% para 20%. Assim, na entrada da semana final, tínhamos Bolsonaro parado e Haddad ainda crescendo, estando a distância entre os dois, na média de 14 pesquisas, em 4 p.p., ou seja, dentro da margem de erro da maioria delas.
O crescimento de Bolsonaro na última semana precisa ser explicado, pois o de Haddad, depois de indicado por Lula, é de fácil compreensão. Dizer que foi a “facada”(por mais misteriosa que seja) não serve, haja vista a quase estabilidade do capitão nos dias seguintes. Afirmar que foi o “antipetismo” que o impulsionou tampouco serve: quase a totalidade do eleitorado já possuia há tempo a informação de que Haddad era o candidato do PT e de Lula e não foi isso que alterou drasticamente as intenções de voto nos sete dias finais.
Nas pesquisas de tracking realizadas pelo Vox Populi, é possível ver como e onde aconteceu esse crescimento de Bolsonaro, que o levou à vantagem no primeiro turno e à vitória no segundo.
Os números mostram que não foi no Nordeste (onde, nos quinze dias finais, a distância entre os dois permaneceu estável), não ocorreu no eleitorado masculino (em que a vantagem de Bolsonaro cresceu moderadamente), não existiu entre pessoas de renda baixa e no eleitorado católico (entre os quais Haddad sempre liderou). No entanto, entre mulheres, especialmente no Sudeste e de renda média e média baixa, Bolsonaro cresceu muito, pela influência, nesse grupo, da religião.
O que aconteceu no público evangélico pode ser visto no Gráfico 2, a seguir:
O Gráfico 2 mostra como Bolsonaro abriu distância em relação a Haddad: quase triplicou a vantagem que sempre possuiu no eleitorado evangélico. Os dez pontos de frente que tinha no dia 26 de setembro tornaram-se trinta no levantamento concluído em 5 de outubro. Como os evagélicos são cerca de 30% do eleitorado, trinta pontos de vantagem no segmento representam 10% do total.
O que mudou a eleição e permitiu que Bolsonaro entrasse no segundo turno quase eleito não foi o antipetismo, a lava-jato, as prestidigitações de Moro, a intervenção dos generais, a partidarização do Judiciário, o governo Dilma, a prisão de Lula, o horror ao PT da TV Globo. Foi uma mudança abrupta e intensa no eleitorado evangélico, especialmente do Sudeste (e do Sul), especialmente de baixa classe média, especialmente feminino.
Um raro bom jornalismo oferecido pela grande imprensa brasileira revelou como isso foi feito: através do impulsionamento de informações falsas e mentiras contra Haddad, disseminadas pelo WhatsApp. Muito provavelmente, usando bancos de números telefônicos fornecidos pelos bispos-empresários neopentescostais alinhados com Bolsonaro. Sabemos em parte como isso funcionou, quem fez o trabalho sujo, quanto custou e quem pagou.
O mito da eleição está em fingir que ela foi “normal” e que Bolsonaro venceu legitimamente. Ter mais votos que o adversário não significa, no entanto, vencer com legitimidade, como vemos a toda hora em eleições manipuladas mundo afora.
À medida em que mais informações e novas confissões vão vindo à tona, esse mito perde substância e diminui a proporção dos que o subscrevem. Hoje, excluindo Bolsonaro e seus áulicos, talvez somente Ciro Gomes ainda acredita na legitimidade dos resultados, sabe-se lá o porquê.
Marcos Coimbra é sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi