O “ICEBERG” QUE NINGUÉM QUER VER

O MAIS TRÁGICO DA HISTÓRIA DOS HOMENS (E DAS MULHERES) É TERMOS ENTENDIDO TARDIAMENTE QUE A NOSSA VIDA NÃO NOS TROUXE EXPERIÊNCIA NEM DISCERNIMENTO SOBRE O QUE VIMOS E VIVEMOS

Tudo parece tão inverossímil que muitas vezes sou tentado, como inquilino deste perigoso condomínio planetário, a acreditar que estamos sendo submetidos a uma prova. Como se fora o rito de passagem de um lugar ermo para um deserto sabido, causticante e rico de prédios e ignomínias.

Não pode ser real, nem mentirosos seriam estes cenários  de perversidade montados por políticos inescrupulosos, arvorados em agentes do Estado. Faltam-lhes o contraste da realidade e os fatos e circunstâncias deste momento que vivemos. É isso que muitos pensam mas não falam.

De alguns dias para cá, percebi nos meus interlocutores habituais, alguns cuidados com o uso das palavras, os sinais perceptíveis de uma indisfarçável inquietação. São pessoas de boa formação acadêmica, libertos das dependências de solidariedade orgânicas, de bom calibre intelectual, seduzidos pelo hábito da leitura e aprisionados pela vontade de conhecer.

Aquela dissimulação educada dos encontros mais recentes, os meus silêncios, lembraram-me os cuidados com uso das palavras, os sinais visíveis, que são os mesmos do constrangimento de saber-se espionado.

Lembrei-me dos anos 64, do controle de todas as fontes da vida privada dos cidadãos e do quanto custou a muitos saltar fora dos padrões de um novo milagre que nascia sob os nossos olhos. Os traços comuns daqueles ímpetos autoritários prenunciam-se agora, quatro décadas transcorridas de um experimento reproduzido pelas vizinhanças. A América, tida como latina, mostrou-se historicamente receptiva ao arbítrio e a insurreição para a tomada do poder. Este cenário de perda da liberdade e de certas garantias transitórias, não lhe é estranho, acostumamo-nos, nós brasileiros a ele. Até nos insurgimos de quando em vez com palavras comedidas, é verdade.

O assédio aos espaços de liberdade do povo e da sociedade é persuasivo. Mostram-se aos poucos, metodicamente, a partir da plataforma de leis e normas, prontas para imediata aviação, modelar “jurisdicopeia” de múltiplas aplicações.

Percebo, agora, repetirem-se os lances do passado, presumidos por enquanto pelo olhar de quem percebe quando o perigo e o medo começam a tomar corpo diante de uma plateia que não traz os olhos do passado. Muitos deles inventaram um futuro e correm, enquanto lhes sobra tempo, para desmontar o presente.

Nem Shakespeare teria imaginado que toda a sua poderosa ficção corresse o risco de definhar em face do “script”montado por essas patrióticas criaturas que, de tempos longínquos, aplicam a sua fortuna e as virtudes que reclamam possuir, em salvar o Brasil.

O conflito que se vai abrindo não encontra antecedentes no Brasil. Não é um insurgência compartilhada com os brasileiros. Não se trata simplesmente do fortalecimento dos partidos de massa com o seu enorme espectro de representação. Trata-se, de fato, da mudança da sociedade, da almejada socialização das perdas, do desmonte da economia de mercado, do retorno aos nacionalismos que armaram o holocausto guerreiro de duas guerras mundiais.

A palavra ”esquerda” perdeu semanticamente, tal como usada atualmente, o seu significado de origem, na Revolução francesa, e nas que lhe seguiram, por onde ocorreu o assalto inevitável e desejado ao poder e ao controle dos instrumentos de governo do Estado. Mais, a construção de paradigmas que se tornaram armas verdadeiras de expropriação da propriedade e da consciência política do povo brasileiro.

As teorias de gênero, o identitarismo estrutural e toda a parafernália ideológica ensinada nas escolas e amplamente enriquecidas nos corredores das universidades, são armas poderosas. Não se esgotam com os chistes e as ironias que lhes reservamos.

O aparato ideológico-dogmático que constitui o seu sistema de sustentação não se completa nunca. É uma forma de editorial que se renova a cada dia, a cada edição do jornal, de acordo com as circunstâncias e a força interna dos “campos dominantes”, as alianças de lideranças que se repelem e se atraem, um processo continuado que caracteriza a cara visível do socialismo no Brasil.

De início, foi trabalhista, agora, vê-se-o transformado em um empreendimento poderoso — o populismo, monstro sem entranhas, capaz de todas as obras, boas e más. Esta caixa preta de novidades, em constante progressão, recolhe o longo aprendizado geracional de comunistas, socialistas, das filiações de catequese da Igreja.

O seu ideário de luta está nos pilares da sustentação de uma pesada estratégia acumulada ao longo dos últimos oitenta anos pelo mundo inteiro. Acrescido agora das táticas operacionais da conquista do poder do Estado (modelo corrente entre partidos “soi disant” de direita e de esquerda), este kit revolucionário ocupa militantes espalhados mundo afora, com seus representantes locais.

Pois bem, é disto que estamos a falar.

Poucos sabem o que está verdadeiramente em jogo, nestes dias tumultuados, para um país que não tem um futuro definido. Na perspectiva de um Projeto de Nação. Sim, há que ter futuros claramente definidos, esta é um verdade geopolítica incontestável.

O presente é um tempo provisório tomado pelas espertezas, pela mediocridade de muitos e pela inépcia dos chamados “homens públicos”, expressão que, seguramente, não entenderam até hoje o seu verdadeiro significado.

Bem se aplicaria às nossas inquietações de brasileiros aquela inclinação mansa de dom João VI, cujos feitos maiores decorreram justamente das suas omissões intencionais em face do inevitável. Dizia o monarca que os problemas aparentemente insolúveis, as questões pendentes, objeto de tantos padecimentos e clamores, resolvem-se a seu tempo, por eles mesmos. Esta cultura dos Braganças fez escola no Brasil. Fizemos de um Deus, brasileiro, adotamos a filosofia do nada é para já e do jeitinho fizemos a chave-mestra das nossas aspirações …

Se fecharmos is olhos, as aflições serão recompensadas. Amém.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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