O DESATAR E O ATAR DE NÓS EM PLENA PANDEMIA

Eles se conheceram na fila de testes da Covid-19. Embora de máscaras e à distância recomendada, conversavam, timidamente no começo e mais distensa e relaxadamente à medida que se aproximavam da vez do atendimento.

Ele, celibatário e sozinho, funcionário de empresa nacional de médio porte, ora em home office, com quarenta e alguns anos de estrada, de idas e vindas pelo mundo afora, o corpo atlético, o vestir-se jovial, óculos escuros e barba por fazer, ali estava, com prescrição que um médico amigo lhe enviara pelo Whatsapp, porque precisava saber se houvera sido invadido pelo coronavírus, haja vista ter ultimamente sentido fortes dores de cabeça e preocupante irritação de garganta. Solitário por vocação e andarilho por imposição do destino, aprendeu a cuidar muito bem da saúde, entretanto o microscópico anjo da morte não nutria o menor respeito por quem quer que seja. Portanto, melhor não arriscar.

Ela, jovem de pouco mais de vinte anos, esforçava-se para não sucumbir aos efeitos danosos das recentes perdas – emprego, marido e mãe, nesta sequência –, todas decorrentes da pandemia. Teve interrompido o seu vínculo empregatício com empresa do ramo de eventos, setor da Economia gravemente atingido pelo indispensável distanciamento social; flagrou o marido – já desocupado e, segundo ele, lutando desesperadamente por um lugar ao sol – em pleno ato de traição, sem direito à defesa e ao perdão, no exato dia em que prestava as contas no emprego e recebia o bilhete azul com destino ao universo dos sem ocupação formal; e, como desgraça pouca é bobagem – é assim que assenta um conhecido ditado popular –, acompanhou, de longe e sob forte emoção, o enterro da mãe, uma até então saudável senhora de quarenta e poucos anos de vida e muita lida, após alguns dias entubada em UTI de hospital para tratamento exclusivo de pacientes com a Covid-19. Fragilizada, não deixava isso transparecer, apenas usava os óculos escuros que, com a ajuda da máscara, escondia as marcas faciais de tanto sofrimento e dor. E de frustração também.

Por várias razões – entre elas a financeira, obviamente –, sentira-se na obrigação de negociar com o locador a interrupção do contrato de aluguel do apartamento em que, nos últimos dias, agora definitivamente separada e só, vivia o seu isolamento pessoal. Logo após a morte da mãe, recebera convite dos avós maternos para ir morar com eles. Naquele momento, não aceitara, mas, com o devido agradecimento, pedira a avó para deixar as portas abertas para ela; afinal, ninguém sabe o dia de amanhã, além de, nessas circunstâncias, recomendável é não dizer dessa água não beberei. Ligou para ela que, com efusiva alegria, reafirmou o prazer de recebê-la em sua modesta casa. – Afinal, tudo isso aqui também lhe pertence, minha filha. – Era como pretendesse antecipar o que um dia iria acontecer, naturalmente. Pois bem. Daí, surgira a necessidade do exame, cuja prescrição assinara um tio-avô médico.

Recolhido o material para teste, decidiram esperar pelo resultado que, conforme os informaram, sairia em cerca de quinze minutos. E ali estavam eles, em área fronteiriça ao balcão de atendimento, conversando, com todas as reservas e cuidados que a situação atual exigia, sobre tudo isso e mais alguma coisa. Ele revelou, por exemplo, que, na faculdade, ainda muito moço, quase se apaixonara por uma colega de turma, de mesma idade, com quem se envolvera sem maiores pretensões, apesar dos riscos, cuja ruptura concorrera seriamente para a sua saída do país, tendo residido por quase duas décadas em várias cidades da velha Europa. Ela, então, confidenciou que nascera de um relacionamento espúrio mantido por sua jovem mãe com um moço por quem se apaixonara, por ele abandonada tão logo ela lhe confessou que estava grávida. A minha mãe comeu o pão que o diabo amassou – ela fez questão de enfatizar –, mas, com o apoio dos meus avós, não apenas me criou… ela me fez ser gente.

Com os envelopes de resultado – negativo, para ambos – nas mãos, despediram-se e, já iam tomar os devidos rumos, quando ele indagou:

– Você está indo pra onde? Está de carro?

– Estou indo pra casa… e de ônibus…

– Aceita uma carona? Pra mim será um prazer…

– Se não mudar muito o seu trajeto…

– Não se preocupe com isso.

– Se é assim, aceito.

Mal dobraram a primeira esquina, ele, após um rápido olhar para o relógio do painel do carro, ressaltou:

– Olha, já é hora de almoço. Você me parece ser uma excelente companhia. Portanto, eu muito apreciaria se você se dispusesse a almoçar comigo. O que acha disso?

– E aonde iríamos almoçar, se todos os restaurantes atendem apenas no delivery?

– É bem verdade. Nada nos impede que façamos isso no meu apartamento. Ou no seu. Nós somos livres e desimpedidos, não é?

– Só que não pega bem pra mim. Mal nos conhecemos e você já me leva pro seu apartamento… Não, acho que não devo…

– Eu prometo não tocar num único fio dos seus negros cabelos… Palavra de homem!

– ‘Stá bem. Eu vou me dar o direito de correr esse risco. Mas não pense que eu seja assim… assim… tão fácil.

Já no apartamento, amplo e com vista para o mar, ele a tratou como se a conhecesse há muito tempo. Serviu-lhe um aperitivo, pôs-lhe o banheiro de visitas à disposição, com um toque em minúsculo controle remoto preencheu o ambiente com música agradável para o mais exigente dos ouvidos e, com um pedido de desculpas – afinal, tratava-se de uma cavalheiro do velho mundo recebendo uma jovem cuja companhia, assim há pouco dissera, lhe seria apreciável –, ligou para o restaurante pedindo um almoço bem especial para dois.

Ela demorou o olhar em alguns pontos bem específicos, por exemplo, a larga estante de mogno com acervo que reunia obras dos mais aclamados escritores de todos os tempos, tais como, só para citar algumas, Guerra e paz, de Liev Tolstói; Os miseráveis, de Victor Hugo; Dom Quixote, de Miguel de Cervantes; A divina comédia, de Dante Alighieri; Dom Casmurro, de Machado de Assis; Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski; Moby Dick, de Herman Melville; e Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Nesse momento, com um sorriso meio irônico, de canto de boca, trocou dois dedos de prosa com o botãozinho de sua alva blusa: Assim tão arrumadinhos, duvido que este senhor tenha lido qualquer um deles. Prefiro os meus. Amassados, sofridos, mas lidos. Ele interrompeu esse fugaz momento de reflexão crítica com um convite:

– Venha conhecer o meu home office. – E, enquanto se deslocavam para certamente o ambiente mais bem cuidado do apartamento, ele prosseguiu. – É daqui que eu retiro o meu ganha-pão.

Ela nada disse. De imediato, chamou-lhe a atenção um painel de fotos que guarnecia uma das paredes do escritório. Ele logo percebeu esse seu incontido interesse. Passou, então, a comentar algumas daquelas imagens que muito lhe diziam respeito.

– Esses são os meus pais no sítio que herdaram dos meus avós. Essa aqui, no canto, é a minha única irmã que, tão logo casou-se, foi morar na distante Wellington, a capital de Nova Zelândia. Aqui sou eu ainda menino. – Ele silenciou quando a percebeu estática, os olhos fixos em foto 9×12, em preto e branco e ainda com boa nitidez. Perturbou-o não propriamente a indagação por ela feita, mas a forma como a fez:

– Quem lhe deu essa foto? Como ela veio parar aqui, neste painel?

– Qual? – A pergunta saiu espontaneamente. Algo certamente havia de errado ali, naquela foto, causando inquietação na jovem.

– Esta, aqui. – E o dedo indicador dela posou sobre a lembrança mais dolorida da existência da sua agora saudosa mãe.

– Posso saber por que tanto interesse nessa foto? – Quis certamente desconcentrá-la.

– Lógico, porque a moça da foto é a minha mãe. – Ele engoliu a observação em seco. – E ela, inclusive, tinha uma igual a esta que agora eu guardo como se relíquia fosse. E, ainda mais, no verso, consta uma declaração de apaixonados: Que o Amor nos una para sempre! E que nem a morte nos separe!

Silêncio absoluto. Só algo se fazia ouvir: a batida dos corações, aparentemente em ritmo de maior frequência.

– Olha, jovem, só posso lhe garantir, agora, que esse moço da foto sou eu. E que essa jovem da foto, eu a amei. E, sem atentar para o real significado disso, eu a abandonei, irresponsavelmente, quando ela me revelou estar grávida. Fugi, num primeiro momento, para não assumir uma responsabilidade para a qual me julgava incapaz. Continuei fugindo por vergonha, por medo de enfrentar uma realidade maior que a minha pobre capacidade para compreendê-la, para aceitá-la. Agi como um covarde. Nada mais pude fazer. – E, com a voz embargada, desabafou. – Ainda sofro muito por tudo isso.

– Então – disse ela quase sussurrando –, você é o meu pai.

 

NOTA DO AUTOR

“Todos nós nos convertemos em horrorosos fantoches, alucinados pela lembrança das paixões de que tivemos demasiado temor, e das esquisitas tentações a que não tivemos coragem de ceder.” (Oscar Wilde, em O retrato de Dorian Gray.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

Mais do autor

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.