O CONTROLE DAS PALAVRAS

[Desorganização informacional e desinformação; informar e desinformar;
a semântica, as metáforas, as utopias e a dialética, os teoremas, os embargos interlocutórios, os axiomas e as súmulas vinculantes — os riscos que a democracia corre]

Dizia um velho esquerdista, médico e jesuíta, amálgama de elevado potencial combativo, que as doenças passaram a existir desde o instante quando os médicos nomearam os padecimentos da saúde — e lhe deram nomes, por vezes em incríveis derivações latinas.

Ivan Illich foi um dos construtores da pedagogia da libertação, muito antes da redução equivocada de Paulo Freyre.

Escreveu um livro que se tornaria famoso quando gente como eu, adolescente em busca de afirmação e reconhecimento, embarcara, por desvio de opinião, nas utopias disponíveis no mercado de ideias de segunda mão.

“Nêmesis da Medicina, a expropriação da saúde” despertou enorme acolhida entre filósofos e ativistas pelo Caribe com irradiação mundial. Vem destas páginas a ideia de que as doenças só existiram a partir do momento que os médicos lhe deram nomes. Claro, a figura é uma imagem bem delineada do compartilhamento das metáforas médicas e da sua apropriação comercial.

Atente-se para a particularidade de o criador desta hipérbole chamar-se Ivan Illich, homônimo do personagem de Tolstoi, juiz czarista que vive na Rússia na segunda metade do século XIX.

O tema do conto é a experiência do viver e morrer com base na vivência de um enfermo.

No conto, quanto na militância de Ivan Illich, jesuíta e médico, pesam os nomes, as marcas e a designação.

Estas lembranças de leituras caídas em exercício findo, surgiram a propósito do acúmulo de marcas de batismo trazido pela mídia e pelos agentes da burocracia da justiça aqui e em outros recantos do mundo para a mentira, como amparo da ação política.

Cresceu um vasto glossário de designações de amplo espectro, nas línguas e idiomas vivos, derivado da expressão inglesa “fake news”. E todos puseram-se a denunciar os malefícios da permissividade da democracia em tolerar a mentira como instrumento mais eficiente para a recriação da verdade. Não se deram conta de que a simulação e a dissimulação existiam ainda no Paraíso, quando Caim tentava dissimular a autoria do assassinato de Abel, em circunstâncias até hoje inexplicadas, a não ser por alguns psicanalistas freudianos…

Maquiavel referia com segurança a importância do engodo, da falsidade e do fingimento como meios de atuação e sobrevivência nos arrrfores do Estado e da República.

Pois agora, jornalistas e homens de Estado, em meio a uma militância descontrolada e carente de ideias, tomados pela grande infelicidade que lhes causam as “fake news” deram por construir palavras e expressões para criminalizar a mentira. Ou a verdade, confirme as necessidades e conveniências. Os tropeços dessa
arquitetura improvisado demonstram quão distantes estavam, na escola, esses novos especialistas em semântica política.

Desinformação ganhou por estes dias a conotação de crime, ainda que não se saiba como seria possível a alguém desvalido de informação útil pudesse ser indiciado pela sua periculosidade para a democracia. A palavra “desinformar” incorpora novas acepções que caracterizam, à vista do rigor dos hermeneutas, compartilhar falsas informações.

A expressão “desorganização informacional” significaria para os construtores de conceitos incriminatórios (não seriam “discriminatórios”?) a iniciativa criminosa de confundir conceitos e significados entre os cidadãos prestantes de uma democracia? Toda democracia corre o risco de ser atingida por uma avalanche insurrecional de uma “desorganização informacional”?

E o que se haverá de fazer preventivamente para conter a onda semântica que troca os nomes e os conteúdos das palavras? Como regular o emprego obsessivo das metáforas, da dialética e das utopias, em defesa do Estado e da democracia?

Fantasias, quimeras, teoremas e axiomas, evidências cuja comprovação é desnecessária, hipóteses e suposições assumem na nossa democracia relativa, em fase de adiantado processo de revisão, ameaças perigosas que impõem interceptação por olheiros e vigilantes qualificados, como medida essencial de segurança do Estado.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.