“O Brasil é uma democracia madura”, por Josênio Parente

A afirmação é de Peter Mckinley, o novo embaixador americano que trocará o Afeganistão pelo Brasil, nomeado pelo Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Ele falou quando foi sabatinado pelo Senado daquele país e chegou a reforçar de que a crise “enfatiza a força da democracia brasileira” (Folha de SP, 22/06/2014, A16 Mundo). Realmente, o foco da crise é a construção de nossa democracia que chega a um momento de romper a inanição e a resistência à mudança.

O Senado americano alinhou as palavras chaves. Na sabatina, o senador Tim Kaine iniciou lhe apresentando os principais desafios da crise brasileira afirmando: “corrupção, desafios econômicos, impeachement, olimpíadas, zica. Se alguém escrevesse”, ele afirmou, “diriam que era inverossímil demais, só pode ser ficção”.

O novo embaixador não se abalou e considerou positivo o fortalecimento das instituições na construção de uma ética liberal com estas palavras chaves: “Estado de direito, processo institucional forte, sociedade civil, mídia extraordinariamente ativa, política, investigadores federais, um sistema judicial que pôde fazer praticamente sem obstáculos”.

Apesar de a crise brasileira ter componentes social, econômica e política, a matriz é essencialmente política e se resume em fortalecer a soberania popular na construção de uma ética laica. Os dilemas revelados pelos senadores americanos existem em todas as democracias ocidentais, pois eles são próprios de uma economia de mercado, de uma sociedade competitiva que se estrutura politicamente para consolidar o pacto civilizatório, uma ética.

A democracia brasileira tem o clássico dilema entre o mercado e o social, a essência da diversidade da sociedade civil. E os partidos políticos deveriam ser os instrumentos que intermediariam essa competição, fortalecida pela sociedade civil organizada e com os movimentos sociais. Uma nova cidadania se fortaleceu com a criação de condições estruturais, como uma burguesia nacional forte para a competição e um mercado interno que se fortaleceu fruto das políticas sociais mais agressivas. Os partidos políticos começarem a ser percebidos como a aproximação da sociedade com a política, mas houve uma trava para que esse processo se consolidasse e esse é o desafio a vencer.

O processo de modernidade da sociedade brasileira deparou-se com uma dificuldade na política: a ausência de partidos políticos representativos fortes, condições necessárias para a governabilidade tanto no presidencialismo de coalizão quanto no parlamentarismo. Essa dificuldade se revela de forma explicita nesse ponto da crise que vivemos.

A soberania popular torna-se impotente e se revela com a ausência de alternância no poder. Instituições fortes, portanto, são condições necessárias para que as pessoas cumpram a lei, mas a impunidade não republicana a fragiliza. O mecanismo de financiamento de campanha é um dos focos importantes da impotência da soberania popular, agora revelado pela luta ideológica da diversidade da sociedade comprometendo o estado de direito.

O tradicional financiamento de campanha, substituindo o clientelismo pela compra do voto, não trouxe a modernidade almejada, continuando a fortalecer oligarquias, e nem fez a ligação dos partidos políticos com a sociedade civil. Não interessava aos políticos de forma geral substituir esse financiamento pelo fortalecimento de partidos políticos representativos e os traços tradicionais de poder teimaram em permanecer junto com um Brasil moderno. Essa realidade já era percebida há mais de três décadas, mas faltava tocar na ferida de forma adequada. Que o diga os trabalhos de Simon Schwartzman na década de 1970 sobre o neo-patrimonialismo.

A geração que assiste essa ruptura traumática na construção de uma ética laica, no processo de maturidade de nossa democracia, necessita ver a democracia brasileira com otimismo, como fez o novo embaixador americano no Brasil quando da sabatina que foi submetido no Senado americano para efetivar sua nomeação. O desafio de um mundo globalizado e de aproximação de culturas diversas, algumas com verdades fundamentais consolidadas e orientando suas ações para a construção de um “só rebanho e um só pastor” traz novos valores. A intervenção militar não é mais pensada como solução dos conflitos típicos da democracia. A tolerância, um valor menosprezado no período da guerra fria, pela direita e pela esquerda, passa a ser reivindicada como a conquista da civilidade.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar Eduardo Cunha, com foro privilegiado, a fim de que ele virasse réu por ter conta secreta em bancos no exterior, o Ministro Luiz Roberto Barroso fez um comentário que merece ser revelado dessa realidade: “é triste”, disse ele. “Dá uma sensação muito ruim de que o jogo é jogado de forma muito feia”. Já para o presente, Barroso diz que “há uma coisa nova acontecendo no Brasil. Não é mais aceitável aceitar dinheiro, seja para financiamento eleitoral ou para o próprio bolso”. E concluiu com uma frase de efeito: “estamos vivendo o fim de uma era de aceitação do inaceitável”.

É por essa realidade que ouvimos do embaixador americano que “o Brasil é uma democracia madura”, embora reconheçamos que essa geração que está vivendo a crise paga um preço alto por herança histórica de resistência das elites na aceitação dos valores republicanos no fortalecimento de nossa democracia. Ainda sentem saudades do “sabe com quem está falando?” Mas vamos em frente! Alex de Tocqueville já considerava que a igualdade é inexorável e que é a liberdade que deve ser conquistada: a convivência com as minorias e os diferentes.

 

 

 

Josenio Parente

Cientista político, professor da UECE e UFC, coordenador do grupo de pesquisa Democracia e Globalização do CNPQ.

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Josenio Parente

Cientista político, professor da UECE e UFC, coordenador do grupo de pesquisa Democracia e Globalização do CNPQ.