O ÁRDUO CONTRABANDO DE LIVROS E IDEIAS

Aos vinte anos, na cumplicidade de um amor revelado, deixei-me conquistar pela sedução de Paris.

Com uma bolsa magérrima e fantasias em efusão, Zuleide e eu partimos para uma longa permanência no boulevard Jourdain, na Cité Universitaire, hóspedes, comensais e estudantes. Ela aluna da Sorbonne e do Museu do Louvre; eu, na Faculté de Droit, entre brocardos jurídicos,esquivando-me pelos caminhos da Hermenêutica.

Naquele tempo, os dias, os meses e os anos corriam depressa. Na velhice correm ainda mais rapidamente, estou a descobrir, agora, como ocorre o perverso de envelhecimento, esta transformação em “idoso”.

Por lá fomos ficando, “sous le ciel de Paris”, “au gré de la fortune”, pobre fortuna de míseros francos franceses amealhados. Viajar com restrições financeiras severas, como o faziam os bolsistas daquela época, resultava em prazer em dobro: nada a comprar, constrições “gourmets” disciplinadas, porém tudo a descobrir e a emprestar às coisas vistas os olhos do entendimento.

Hemingway confessa em “Paris est une fête” que deixava para visitar o Louvre quando a falta de dinheiro o privava de comer o indispensável. Correspondente de um jornal de Kansas em Paris, faltavam-lhe naquele tempo leitores e pagas suficientes para comer na Lutétia. A fome, dizia, despertava uma percepção delicada para a apreciação dos recursos dos pincéis, dos contrastes, dos tons e da visão que o artista construía do seu mundo. Livrava-se por caridade de Gertrude Stein da persistência da vontade de comer, duas vezes na semana, nas suas apreciadas “happy hour” intelectuais a que comparecia, mesmo que não fora convidado.

Acontecia conosco, a nosso modo, nas bibliotecas e nas rodas intermináveis dos bistrôs (com um xícara mínima, ocupava-se a tarde inteira uma mesa no Le Sorbonne, custo-beneficio comprovado).

Descobri, dominado pela inveja mal dissimilada, que alguns amigos traziam sempre muitos livros nas suas bolsas. Mais comedido, o franco francês em queda inflacionária, comprava alguns “bouquins” de raro em raro nos alfarrabistas do boulevard Saint-Michel, quando chegava algum reforço do Brasil.

A Librerie Gibert Joseph, esquina com a rue des Écoles e na Place Saint-Michel, era um reduto de livros, um sebo conspícuo. “Livres aux anchères, “bouquins” a preço justo, vendas a prestação…

A uma indagação minha, Olégario, um carioca astuto, engenhoso e conversador, como o são os cariocas, colega de curso, confessou-me, efusivo, cheio de patriotismo:

“Cearense, livro não se compra. Requisito os que me interessam em nome da Revolução !”.

Soube, depois, que a esposa requisitava, pelas mesmas patrióticas razões, relógios de grife e pulseiras. Como os meus impulsos revolucionários não haviam ainda alcançado tais níveis de ativismo praticante, dei por adequado e conveniente precaver-me dos perigos de gestos libertários audaciosos. Nas lojas, lia-se por esse tempo a advertência desconcertante: o roubo era condenado na França naquela época com “travaux forcés, en Afrique”. Imagino que o Código Penal francês tenha sido adaptado, tantos anos decorridos, aos novos tempos de permissividade ética e criminal.

Evoco aqui, bem a propósito, perante testemunhas respeitáveis que me possam estar a ler, a história de Jean Valjan, posto a ferros pelo roubo dos castiçais levados da casa de um velho pároco indulgente… Com esta novela de miseráveis condenados, Victor Hugo comoveu a França mas não removeu a prática do Estado justiceiro, encharcado pelas ideias de liberdade, de fazer justiça a seu modo… Os franceses tinham por hábito, crestar os hereges em “fogueiras da vaidade” ou cortar-lhes o pescoço com um invento engenhoso — a guilhotina, mecanismo de correição construído por um certo Monsieur Guillotin… Agora, finalmente, em notório avanço civilizacional, confabulam, constroem alianças duvidosas, tudo a conta de uma aritmética eleitoral tida em elevada estima — contam as cabeças…

Em um quiosque de jornais, por uma tarde de abril, li a manchete estampada no “Le Monde”:

“L’ Armée au pouvoir au Brésil”.

“Lá estava de volta o “poder moderador”, pensei comigo em voz alta. E cogitei, prudente: “respeitamos tanto a democracia que em sua defesa não hesitamos em remover de circulação os democratas…”

Para um bom entendedor, uma só palavra basta. Pus-me de sobreaviso. Abrimos as malas, aos cuidados de Zuleide, e começamos os preparativos para a navegação do regresso. O regresso de Penélope e Ulysses ao reino de Ítaca, mal comparando.

Havia em Paris uma livraria que vendia livros editados na então União Soviética a preços baixíssimos, por obra benemérita do Kominform. Abasteci-me sem comedimento, com as sobras das economias recolhidas e enchi-me do que pude das “Éditions Sociales” em magníficas encadernações, impressas em Moscou. O odor revolucionário, sentíamos-lo à porta, as estantes pletóricas das reflexões de Lênin e do camarada Stalin, de Marx e Engels em brochuras populares e em belas encadernações libertárias. Li-as em brochura, mas trouxe comigo algumas edições — com lombada de couro. A preços populares… Desfiz-me de parte destes tesouros em doação furtiva feita à Biblioteca Municipal Lustosa da Costa, em Sobral. Talvez tenham escapado aos movimentos de desinformação ideológica que, de quando em vez, promovem assepsia conveniente necessária nas bibliotecas.

Chegada a data do “repatriamento”, ocorreu-nos o perigo que correríamos diante dos olhos perscrutadores dos oficiais da alfândega do Rio de Janeiro.

Desembarcaríamos de um velho “vapor” de longo curso, o “Augustus”, como passageiros de terceira-classe. O que fazer, como dissimular o contrabando das ideias que pretendíamos trazer, esta preocupação acompanhou-nos pelos 12 dias de navegação entre céu e mar.

O meu sogro, homem de coragem e solidário, tranquilizou-nos:

“Irei pessoalmente ao desembarque e levo o Flávio comigo, me poupem de choramingas arrependidas!”

Flávio, na intimidade era simplesmente o deputado Flávio Portella Marcílio, que viria a ser presidente da Câmara dos Deputados…

Transposto o Atlântico, por mares nunca dantes navegados pelo jovem casal, marinheiros de primeira viagem, aportamos na praça Mauá. O clima era pesado e tenso, dava para perceber, esboços de uma ditadura hesitante. Até mesmo os seus ensaios preparatórios podem ser sentidos no ar, a uma primeira golfada. Um país tomado pela nova ordem, ordeiro e trabalhador. O tempo diria o quanto.

Na esteira das bagagens lá estavam o “Flávio” e o dr. Martins Filho.

“Quais são os volumes ?” Apontei para uma “cantina”, a mala de alumínio pesada com as ideias subversivas que transportava, ao funcionário alfandegário.

Senti-me pela primeira vez encarnando na pele de um revolucionário…

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.