Notícias do futuro – versão 2

Quando veio a peste e a trombeta do fim dos tempos soou, parecia que todos se uniriam contra a ameaça que tornava todos iguais, ameaçando a todos igualmente em dois flancos, saúde e economia. Mais que uma esperança, nascia a ideia de que o vírus levaria à mudança do discurso e ao avanço das consciências. No meio da ameaça, por cima da dor e para além de todo pessimismo e efetivo luto, a solidariedade seria inevitável. A monstruosa desigualdade social seria, enfim, enfrentada. Toda a injustiça dos sistemas ditos vitoriosos e bem sucedidos estaria exposta, posta a nu diante de todos os olhares. Era questão de tempo que a política sofresse um “clique” e simplesmente mudasse.

Os mercados financeiros foram feridos de morte já nas primeiras horas e seguiram sangrando por dias, uma hemorragia potencialmente mortal. As indústrias perceberam o abismo de demanda à frente e pisaram no freio, e pararam completamente. O comércio fechou, As pessoas se trancaram em confinamento por semanas, experimentando todos os limites da proximidade humana integral e contínua, como se permanente fosse. As lideranças de todo lugar vacilaram, mas agiram, ninguém pensou ou agiu numa dimensão além das fronteiras físicas, formais e de seus interesses. Nenhuma ação apontou para mudanças estruturais. Mas havia esperança, e a ideia da mudança prosperou, desenhou-se, evoluiu.

Eis o futuro que se desenhou nas brumas da esperança e do desejo: a desigualdade social e econômica seria reduzida, os mercados seriam regulados e contidos em seus excessos selvagens, aos serviços públicos essenciais jamais faltariam recursos novamente, os países seriam desarmados, assim como as pessoas e as polícias e a sustentabilidade seria levada às últimas consequências.

No começo, houve a mobilizacão da imprensa, dos governos e dos parlamentos, todos seriam salvos, era a palavra de ordem. O sacrifício seria amplo, mas os governos e os economistas se puseram de acordo em romper qualquer barreira monetária e fiscal para uma recuperação rápida e para um futuro melhor. A execução, entretanto, veio, como sempre, enviesada, dirigida, manipulada, oportunista.Tudo bem que começasse com os bancos o enorme socorro. Tudo bem que para os mais humildes a ajuda seria quase insignificante. Paciência com o debate de propostas mais radicais. Calma como andor, gente…

A peste fez o seu dantesco serviço entre os pobres, nas periferias dos países ricos e na geografia plena dos países pobres. Ninguém notou ou noticiou, mas a África foi devastada, a América do Sul ficou para trás, vendo morrer e enterrando e queimando pilhas de corpos. Nesse momento, quase mais nada era notícia, não havia energia humana para lutar, para denunciar, para gritar – só havia algum jeito de gemer.

Muito movimento, pouca ação. Com o tempo e com o pagamento de muitas vidas, muitas almas, com o fim da esperança e a cremação das boas ideias. Tudo voltou ao normal, um normal que todos dizem ser o novo normal. Salvaram-se os mais fortes e mais capitalizados e a isso dá-se o velho nome de mercado, que se rege pela lei da oferta e da procura (uma versão soft da lei da selva), salvaram-se as pessoas mais protegidas pelo velho sistema, e a isso chamam de meritocracia. As instituições mudaram para que tudo continuasse como antes, e a isso dá-se o nome de democracia.

E agora há um certo número de novos heróis a homenagear, umas novas datas a comemorar a vitória sobre a peste, muitos livros de história imediatamente escritos e premiados, intelectuais antigos tiveram seu prestígio renovado. E a vida segue.A população acompanha atentamente as cotações da bolsa, as taxas de câmbio, o nível dos juros básicos da economia, a meritocracia, o empreendedorismo, enfim, o cada um por si.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.