Morangos Silvestres: o cinema como arte de intenção, por Daniel Araújo

O cinema é uma arte de intenções. E essa é uma das afirmações que podemos aferir quando estamos diante de certas obras cuja potência e vigor parecem ultrapassar os próprios limites que a cinematografia coloca como parâmetro. Estado de emoção do fazer artístico, essa é condição encontrada em obras-primas da cinematografia como no caso do inesquecível Morangos Silvestres (1957).

Isak Borg (Victor Sjöström) é um professor de medicina que revisita vários momentos marcantes de seu passado durante uma viagem de carro até sua antiga universidade, onde ele irá receber uma honraria.  Acompanhado de sua nora Marianne (Ingrid Thulin), rememora episódios de sua família e da antiga noiva.

Assim como a linha conceitual que Ingmar Bergman construiu ao longo de toda sua trajetória de 67 produções entre longas metragens para cinema e trabalhos para TV, Morangos Silvestres é um mergulho na psique de um personagem fragmentado. Entretanto, essa condição se coloca na obra por meio de uma abordagem bem mais sutil, se compararmos com outros longas do mestre sueco, como “Através de um Espelho” (1961), “Luz de Inverno” (1963) e “O Silêncio” (1963).

Aqui, cada uma das personagens exploradas são dissecadas pelo olhar de Bergman. Cheias de questões mal resolvidas e bloqueios internos e com o mundo que o cercam, esses caracteres possuem o peso de uma arquetipia*. Na verdade, eles são o olhar do diretor sobre o mundo que se esquadrinhava em todas as suas contradições. A guerra e seus desdobramentos e o homem moderno que se contemporaneizava são os traços dessa construção bergmaniana.

Mas, em “Morangos”, estamos diante de um filme que repousa na leveza da apreciação acerca do homem que, apesar de tantas memórias obliquas, evoca a voz de um saber a respeito da vida como processo de continuo aprendizado. Mas como todo grande mestre na arte de contação de estórias, Bergman lança mão de elementos bastante específicos que tornam esse filme mais um entre tantos marcos que ele ajudou a cunhar na história da cinematografia.

Em “Morangos”, estamos diante do filme que repousa na leveza da apreciação acerca do homem que, apesar de tantas memórias obliquas, evoca a voz de um saber a respeito da vida como processo de continuo aprendizado

Primeiramente, o longa é quase uma carta de agradecimento a toda a contribuição de Victor Sjöström fez pelo cinema. Como um dos maiores realizadores que nossa arte conheceu, o papel de Sjöström é uma verdadeira metáfora de tudo o que ele mesmo, enquanto homem do cinema, fez pela cinematografia desde o início do século XX. Foi a forma que Bergman encontrou de dizer “obrigado por tudo”.

E seguindo a lógica de produção que assina o modo bergmaniano de criar, o filme possui em si uma estrutura extremamente enxuta. E esse é certamente o ponto mais interessante em seu fazer. Porque apesar de trabalhar com um elenco principal de 5 a 6 atores, o diretor distribui a potência interpretativa em parcelas exatas enquanto atuação. O que por si permite que cada ator possa dar o que de melhor tem enquanto sujeito de ação.

Ele dispensa a lógica histórica do star system americano com sua estrutura que concentra a atenção em um casal de atores envoltos numa gama de clichês, ainda hoje em voga. “La La Land” (2017) é uma fatídica prova disso. Em seus trabalhos, o diretor traz o que o dispositivo teatral tem de mais potente em consonância com o que o cinema é enquanto linguagem.

Aqui, Bergman (o discípulo) se reúne com Victor (o mestre). Duas gerações de um cinema não sueco, mas universal, eterno

Falamos, portanto, do filme embasado na mensagem. Concebido como o teatro em suma se estrutura desde a Grécia Antiga. Assim como a concepção de um cinema mais enxuto enquanto técnica. Menos planos herméticos e esteticamente complexificados, tal qual atestamos mais na criação hitchkoquiana.

Mestre de clássicos, realizador de formas, Ingmar Bergman imprime em seu inesquecível “Morangos Silvestres” toda a potência fílmica que se pode atestar também através de obras como “Mônica e o Desejo”, “O Sétimo Selo” (1957), “Persona” (1966) ou “Fanny e Alexander” (1981), entre tantas outras criações.

* De origem grega, a arquetipia diz respeito à concepção do arquétipo, que é entendido como o primeiro modelo ou imagem de alguma coisa, antigas impressões sobre algo. Na Psicologia Analítica, significa a forma imaterial à qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar (Carl Jung).

FICHA TÉCNICA

Título Original: Smultronstället

Tempo de Duração: 91 minutos

Ano de Lançamento (Suécia): 1957

Gênero: Drama

Direção:Ingmar Bergman

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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