Paulo Arantes, em O novo tempo do mundo (2014), delimita, na senda dos conceitos de Reinhart Koselleck (Crise e Crítica), que a fratura fundamental do moderno tempo do mundo se estabelece entre espaço de experiência e horizonte de expectativa. Robert Kurz, no ensaio O fim da teoria, aponta que a distinção crucial entre as sociedades ditas “pré-modernas” da sociedade moderna é a de que, de um lado, as primeiras vinculam-se a sua ancestralidade e a segunda aponta para um futuro inatingido, e por outro lado, as primeiras não se encontram em contradição consigo mesmas ao passo que a modernidade se desenvolve numa autocontradição permanente.
A modernidade é, assim, produto de uma fratura, carrega consigo uma lacuna, um vazio de sentido que a faz devorar vorazmente o mundo e a si mesma, sem que se lhe sacie a fome. Seu campo de experiência não está em consonância com natureza, ancestralidade, nem reconciliado com sua expectativa. Seu vazio interno mira a quimera inatingível de um regime de acumulação de valor (dinheiro, capital) para o qual o mundo inteiro não é suficiente ao seu regime de mortificação, sacrifício: “É a Morte — esta carnívora assanhada —/ Serpente má de língua envenenada/ Que tudo que acha no caminho, come…/ — Faminta e atrai mulher que, a 1 de janeiro,/ Sai para assassinar o mundo inteiro,/ E o mundo inteiro não lhe mata a fome!” (Augusto dos Anjos, Poema negro).
A fratura que esta sociedade abriu nos quatro quantos do mundo é uma ferida aberta a ser tocada, certamente, mas não é nela que tocaremos aqui. Retomando Paulo Arantes, essa dissociação entre experiência e expectativa, marca do moderno tempo do mundo, propiciou a noção de progresso como ideologia de legitimação, anunciando a passagem de uma dita humanidade da heteronomia à autonomia, da superstição à consciência de si como sujeito. Essa ideologia, no interior do centro europeu, não operou sem críticas; Marx, Freud e Nietzsche, ao menos, aparecem como três vozes dissonantes: um, disse que ainda estamos na pré-história, que ainda não saímos do reino da necessidade, das relações de dominação de classe e das formas fetichistas de configuração social (não é a consciência que define o ser social, mas o inverso); o outro, que a consciência é uma fina camada de algo que opera na sombra de nossas ações, e se manifesta indiretamente no sonho, no chiste, no ato falho, nas somatizações, o inconsciente; e enfim, o terceiro diagnostica antes o impulso vital (ou de negação deste) que se encontra latente nos valores morais e de verdade de qualquer época.
Retomando, o curto verão da fratura moderna encontrou dois sinais, na primeira metade do século XX, que fizeram reconciliar experiência e expectativa: os campos de concentração/extermínio e as bombas em Hiroshima e Nagasaki. O campo nos apresentou o gemido (ou mesmo a mudez) como sinal de até que ponto pode o poder soberano tornar nua a vida humana; a bomba nos apresentou com estrondo um soar da trombeta de que, a partir daqui, entramos numa relação de expectativas declinantes, fazendo-nos habitar um perpétuo presente sob a insígnia da emergência.