Mestre Terto (ou a milenar arte – privilégio dos humanos – da apropriação indébita), por Luciano Moreira

Assim que parou a Hylux em frente ao portão que dá acesso à casa de praia da família, recanto do descanso merecido nos finais de semana, ele ouviu a voz por demais conhecida da mulher do caseiro da mansão ao lado:

– Doutor, doutor…

– Diga, dona Chiquinha… a senhora parece um tanto… eu diria… preocupada.

– Estou não, doutor. É que o mestre… o mestre… Ô menino, como é o nome do mestre?

– É Terto, mãinha… mestre Terto – responde, sem tirar o olhar da pipa que, sob seu controle – e nisso e, certamente, em mais algumas outras traquinagens, ele revela habilidade de gênio –, dança freneticamente ao sabor dos ventos, um molecote de uns dez, onze anos de idade, pés descalços, bermuda listrada que vai ao meio da canela, peito e dorso nus e cabelo cortado à Neymar.

– Isso. Doutor, o mestre Terto disse que tentou manter contato com o senhor, mas o celular dele descarregou e ele não conseguiu…

– Mas quem é mestre Terto, dona Chiquinha?

– É o mestre que trabalhou aí na sua casa desde segunda-feira. Inclusive…

– Mas eu não contratei ninguém, não mandei ninguém fazer trabalho nenhum… nem aqui nem em lugar nenhum…

– Como assim, doutor?! Eles estavam trabalhando até altas horas da noite. Diziam que era pra deixar tudo pronto antes de o senhor chegar pra este fim de semana. Só terminaram ontem à tardinha.

– Sinceramente, eu não consigo entender coisíssima alguma…

Aberto o portão, a Hylux adentra a área frontal da casa. Sem qualquer esforço, ele percebe a gravidade do caso. Todos descem e se assustam com o que veem.

– Como eu ia dizendo, doutor, eles acertaram comigo – e, por favor, não diga isso ao meu patrão porque, se ele souber, ele me dá um chute no traseiro – eles acertaram o fornecimento do almoço e do jantar, me entregaram os mantimentos, mas disseram que o senhor me pagaria o serviço…

– Como é que é?! Eles arrombaram a minha casa, usaram – só Deus sabe como – de tudo o que se contém nela, fizeram toda essa desgraça e eu ainda tenho de pagar a senhora pelo fornecimento de marmitas… Ah, essa é boa!!!

– Mas, doutor, como é que a gente ia desconfiar. A gente não tinha… eles não deixavam a gente entrar na sua casa… nem passar do portão…

– Não desconfiaram… Mas como?! Ninguém sai por aí, sem que ninguém veja, carregando uma piscina de fibra de uns quarenta metros cúbicos…

– Vê, a gente viu… Só que o mestre Terto dizia que o senhor tinha mandado trocar a piscina de fibra por outra construída de tijolo e cimento…

– Desgraçado!!!

– Quanto devemos à senhora, dona Chiquinha? – Perguntou a mulher do doutor, que até então se mantivera calada, apesar da gravidade da situação. – A senhora não tem culpa de nada, não tinha e nem tem obrigação de fazer qualquer coisa. Nós é que temos de avaliar a situação… pensar mais em segurança para nossos bens materiais e para nós mesmos…

– Concordo com você, minha velha. Acerte tudo aí com a dona Chiquinha. Quanto ao mestre Terto… Ah, mestre Terto!… Um dia com ele eu me acerto. Deus há de me conceder essa graça!

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.