Parodiando Drummond, lutar com ideias é a luta mais vã, entanto, lutamos quase toda manhã. Até onde sei, Machado de Assis estabelece uma diferença entre o Brasil real (que são vários) e o Brasil oficial; ele é um mestre não apenas no sentido da escrita, mas também por ter conhecido, vivido e sido formado por um e por outro. Ariano Suassuna encontra seu Brasil real na paisagem do sertão; ainda que filho de coronel, de fazendeiro e governante da Paraíba nos anos 20, Suassuna aproveitou do espólio material o tempo e as condições para se tornar, também ele, um mestre no que toca o assunto formação nacional.
Começo, simploriamente, lembrando que muito provavelmente a ideia que permeia toda a sua produção no campo da cultura esteja ligada ao seguinte elemento: qual o teor messiânico do quarto estado; qual a possibilidade do quarto estado, o povo, estabelecer o reino da felicidade, tema tão caro seja a religiosos quanto aos que lutam secularmente por uma sociedade justa e livre, emancipada. Esse é um tema ao qual ainda é preciso melhor se debruçar, mas um elemento de interrupção da escatologia inerente ao apocalipse se encontra em dois ditos no Auto da Compadecida, ou seja, para o dia do Juízo existem duas coisas que o Ser-tão aprendeu. O primeiro é o dizer de João Grilo:
Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher.
O segundo é o dito de Chicó: “não sei, só sei que foi assim”. Quando a morte vier, e o Juízo implacável do destino quiser mostrar sua força (na verdade o faz uma vida inteira, morte e vida Severina), esse é o melhor dito redentor: “não sei, só sei que foi assim”. Bem que suspeitava que todo sonhador tem um tanto de santo.
Ariano, em entrevista, relembra a Revolução Francesa, que o quarto estado era o povo (campesinato rural e proletariado urbano) e, como de costume, pertencentes à tradição dos oprimidos de sempre, foram peça de um jogo em que a burguesia, naquele momento sendo também povo, alçou o Estado, o poder econômico e político. Ariano é um tanto questionável na sua relação com Dom Sebastião, príncipe português que se perdeu numa batalha contra os Mouros e tornou-se símbolo de um Quinto Império português (messiânico), pois voltaria e instauraria o tal reino da felicidade aos portugueses. Bem, os portugueses logo depois acabam migrando para a sua Colônia, o Brasil, devido às expansões napoleônicas e esse tal Quinto Império passa a permear um certo imaginário no Brasil que convém, agora, lembrar de seu exemplo em Canudos, com Antônio Conselheiro e todo o povo assim chamado sertanejo acomunado.
Canudos é esse elo perdido (ou seja, a esperança não está no futuro, ela foi pisoteada no passado) de um Quinto Império como reino da felicidade para o quarto estado, no caso o Brasil real (e esse Brasil real é tão diverso ao ponto de não caber na noção de Estado-Nação, daí terem sido, como tantos outros, massacrados pelas forças centrais da República militarista e positivista), toda a tradição dos oprimidos que encontraram naquela cidade, Canudos, o Reino há tanto tempo prometido. Que fique dito, essa noção de quarto estado se refere a qualquer lugar do mundo no sentido dos oprimidos de sempre e em qualquer lugar desse planeta, e o estou tomando como termo metafórico. Em suma, o tema do messianismo (que Ariano delimita como sertanejo) do quarto estado pode ser compreendido como o teor de verdade, o ponto nodal e crítico do que até aqui tenho percebido da obra de Ariano Suassuna, e possui apontamentos que vão além do campo da cultura.