Me lembrei de Carlitos, por PEDRO HENRIQUE

Me lembrei de Carlitos, senti saudade do seu riso franco. Me lembrei dos ditadores, das dita-dores, das fábricas que regurgitam e moem gente – daquela moça que vendia flores.

As luzes da cidade se apagaram quando amanheci. Não senti falta do companheiro de copo, sem ser companheiro de cruz. Me lembrei do cheiro da flor que se foi e nunca mais vi.

“Meu bem, não chores, hoje tem filme de Carlito”. Filme não vai ter não, mas tem o Carlito meu amigo ali da esquina. Equilibrista na impiedosa corda bamba da vida. Nunca foi palhaço, mas vive como quem, no picadeiro, precisa fazer da falha o móvel do riso.

– “Cadê a ‘Dona Mocinha’, Carlito?”, perguntei como quem se faz de desentendido. – “Perdeu o juízo, largou-se na vida… nunca mais vi”.

Era valente, tentou ir além da dor na sua aventura para além do Bojador no oceano da vida medíocre. Talvez não tenha sido astuta como o grego Ulisses, foi sentimental como Orfeu – e olhou atrás. Ouviu o canto da sereia e desceu até a mansão dos mortos, até o mundo das sombras (aquele Império erguido às margens dum rio chamado Esquecimento no interior da cabeça de cada um) atrás de sua Eurídice. Naufragou nas ilhas… – “Ilhas perdem o homem”.

Drummond bem que poderia ter  dito: “Meu bem, não chores, hoje tem filme de Carlito”. Nem todo mundo tem a sorte de ouvir seus conselhos.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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