Mãos ao alto, cidadão!

Pedi um veículo por aplicativo, e logo após a caminhada, o motorista reclamou dos buracos existentes na periferia para onde me deslocava. O motorista aborrecido afirmou que o que ganhava, após pagar a taxa da empresa de aplicativo que usava o veículo do condutor para ganhar dinheiro, mal sobrava algum para o conserto do carro, em razão das avarias que lhe eram causadas pela precariedade da malha viária naquele subúrbio.

Conversa vai, conversa vem, perguntei-lhe se sempre fora motorista, ao que ele me afirmou que havia trabalhado no escritório de uma empresa de ônibus interurbano, que havia fechado as portas por conta da falta de usuários que pudessem pagar as passagens cada vez mais caras.

Disse que era formado em administração e que agora ganhava menos, mas estava se virando nos trinta para sobreviver por falta de um emprego melhor.

Ali estava um exemplo claro do que os novos nichos de emprego, mesmo mais mal remunerados, como os criados pelos aplicativos de transporte urbano mais barato, eram infinitamente menores do que aqueles causados pela alta tecnologia cibernética criada pela microeletrônica.

Os novos empregos criados, minoritários em relação ao total dos empregos perdidos, e pelo mesmo motivo, ou seja, pela tecnologia aplicada à produção de mercadorias e serviços, é a mais explícita contradição da lógica capitalista.

Ao mesmo tempo que em engorda os lucros individuais das empresas que buscam na tecnologia a redução de custos na produção de mercadorias e serviços, é o mecanismo irreversível pelo qual é reduzida a massa global de lucro e mais valia, únicas capazes de promover o necessário aumento constante da massa de valor válido.

A massa de valor global tem que ser necessariamente aumentada de modo constante, sem a qual não pode ocorrer a irrigação da economia de mercado, que tal como a falta de sangue no organismo humano, desfalece e morre.

A emissão de moeda sem lastro, desconectada da produção de mercadorias que lhe autoriza a emissão substanciosa, como sabemos, causa inflação, que é a tormenta existente hoje até nos países de moedas fortes, ou pretensamente fortes, que apenas se sustentam na credulidade dos governantes dos países da periferia capitalista e rentistas para sobreviver.

Tem prazo de validade pré-determinado, e que está prestes a se esgotar, a conhecida subserviência governamental à ordem capitalista mundial pelos países da periferia capitalista, que diante da chantagem do sistema bancário internacional que ameaça o corte da rolagem das dívidas que sustentam tais governantes submissos, aceitam as moedas ditas fortes e sem valor como se fossem válidas, tal como alguém que renegocia uma nota promissória de vencimento no longo prazo, por uma emitente falido.

A constante rolagem da dívida pública, seja com juros escorchantes como aqueles cobrados aos países pobres, ou mesmo com juros baixos ou até negativos para os países ricos, é mecanismo artificial com data futura de esgotamento e colapso.
Entretanto, como tal desfecho falimentar da mediação social pela forma valor anêmica vem sendo prologado por conta da falta de um movimento revolucionário que pense e aja fora da caixa burguesa institucional eleitoral, infelizmente aceita como alternativa democrático burguesa ao famigerado fascismo, numa polarização fora de foco, é o cidadão metido nesta camisa de força quem mais sofre, atribuindo a si mesmo uma culpa individual que não tem.

Ao cidadão submetido à relação social capitalista incidem dois grandes processos de espoliação:
– (i) a cobrança de impostos cada vez mais agressivos por conta da falência do Estado;
– (ii) a extração de mais valia, que tem montante cada vez menor em face do desemprego estrutural causado pela contradição a que antes aludimos (alta tecnologia aplicada à produção de mercadorias e serviços).
O cidadão espoliado pelo capital e seu Estado, paradoxalmente, mendiga e agradece a dois senhores:
-(i) ao capital que já não lhe oferece um emprego, hoje cada vez mais escasso e que o obriga à aceitação de tal exploração na lei da oferta e da procura, ou seja, da compra e venda da mercadoria força de trabalho humana assalariada (vide Marx, mais atual do que nunca, que afirmava que o exército de desempregados conspira contra o trabalhador empregado);
-(ii) pela presença do Estado que o oprime institucionalmente sob o pretexto de lhe proporcionar serviços na segurança pública, educação e saúde, serviços básicos de precária ou impossível efetividade, sem falar nos outros importantes que lhe são negados como infraestrutura urbana de circulação (daí a buraqueira na periferia) e habitacional, e serviços de cultura, esportes, lazer, etc.

Enquanto isto, prega-se a volta da impossível retomada do desenvolvimento econômico e medidas de convivência civilizatória como contraponto à insensatez bárbara fascista e ao pensamento liberal burguês sempre ávido por governos ditatoriais nacionalistas xenófobos, racistas, misóginos, e retrógrados mantidos pela força das armas militares (que também existe como proselitismo de defesa dos oprimidos).
Os governos conservadores (intitulados como liberais nos Estados Unidos e outros países da Europa, num sentido diferente daquele que por aqui lhe atribuímos ao termo), eleitos pelo voto ou pela força ditatorial das armas, querem o estado mínimo como forma de concentrar recursos na infraestrutura de produção de mercadorias, gastos institucionais de incentivo à estrutura de poder que o sustenta, e gastos militares.

Neste sentido pregam a indispensabilidade do Estado na prestação de serviços como segurança pública, educação e saúde por empresas privadas remuneradas por particulares ou pelo próprio Estado (a chamada terceirização), tudo dentro do desiderato de promoção da economia capitalista.

Os governos mais à esquerda querem um Estado forte, empresarialmente estatizante, pretensamente capaz de prover as necessidades do cidadão pagador de impostos.

Como se vê, os pressupostos capitalistas de Estado, empresa estatal produtora de mercadoria e serviços, e cobrança de impostos, estão claramente estabelecidos em ambos os projetos políticos.

O que os une umbilicalmente é a existência do estado; da forma mercadoria (portanto capitalista) ; e dos impostos a serem cobrados ao cidadão exaurido economicamente, fatores que dão sustentação à ordem político-jurídico-constitucional estabelecida em ambos os projetos.

O Estado é sempre opressor justamente porque se assenta sobre uma base de exploração do cidadão escorchado pelos fatores antes elencados.

Acaso tivéssemos uma sociedade livre da opressão burguesa-estatal, na qual os indivíduos sociais fossem senhores de suas vontades e esclarecidos de modo a exercerem a sua soberania de vontade em uma ordem de produção social compartilhada e jurídico-constitucional horizontalizada, jamais agrediria a própria vida, expressa na sua subsistência cômoda e na sustentabilidade ecológica.

O assaltante da esquina, que grita “perdeu, play boy” de arma em punho, ou o homem que cata restos de comida numa lixeira de bairro rico, podem ser vítimas de uma mesma causa original: a exploração social e ordem jurídico-constitucional perversa do Estado, que tal como o meliante, nos diz: “mãos ao alto, cidadão!”

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;

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