MANHÃ DE SÁBADO, por Duarte Dias

Dirijo pela avenida João Pessoa, rota antiga que liga o centro da cidade aos bairros da zona sul, em especial o de Parangaba, antigo aldeamento indígena, fundado pelos jesuítas da Companhia de Jesus.

Me vejo próximo de uma das ruas de minha infância, talvez a mais marcante delas: rua Ana Nery. Tanto tempo sem vê-la… Mudo a rota. Já transitando no quarteirão onde morei, observo o casario ainda existente e me vem na memória episódios e pessoas que por ali habitaram, entre elas o seu Dário, dono da maior e mais sortida bodega das imediações. O imóvel onde ficava o seu comércio parece ter parado no tempo, dada a falta de alteração de sua fachada e o estado de conservação do prédio. Vejo sentado, no batente de uma das portas – que se encontram fechadas –, uma figura envelhecida, magra, com aspecto doentio. E conhecido. Paro o carro e desço.

_ Bom dia!… Francisco?

O homem olha para mim com desconfiança; certamente não me reconhece. Ou, na verdade, nunca me conheceu, sequer supondo minha existência até esse momento.

_ Sim?

_ Talvez você não se lembre de mim, afinal eu era um garoto quando morei nessa rua. Mas talvez você lembre da minha família… Morámos aqui na década de 70, ali, naquela casa que hoje é um sobrado… Dona Perpétua e seu José…

Após breve momento, ele se manifesta.

_ Não, não lembro não… Mas você era mais magro, não era?

_ Magro e menor… – eu tinha oito anos quando morei aqui… – respondo.

_ É, então faz muito tempo mesmo… Não lembro de você não… Tá morando por aqui de novo?

_ Na verdade não… É que tava passando por perto e me deu vontade de ver como é que as coisas estavam… Aqui era a bodega do seu Dário, não era?

_ Era. Ele morreu.

_ É, fiquei sabendo… Faz tempo, né?… Lembro que ali na esquina morava a dona Andréa e o seu Rodrigo…

_ Morreram também. E morreram também dois filhos deles.

_ Pois é, também fiquei sabendo… uma tragédia imensa…

Francisco parece menos desconfiado após a descrição de minhas lembranças.

Olho ao redor. Novas lembranças surgem em minha mente. Francisco, no caso, é figura secundária nelas. De fato, sua presença naquele instante, ali sentado no batente da outrora bodega do seu Dário, funciona mais como um personagem de um passado observado mas não propriamente vivido por mim, dado ele já ser um adulto quando da minha infância. Um adulto exótico, diga-se, fosse pelos longos cabelos dando volume a uma silhueta magérrima, fosse pelos coloridos e barulhentos tamancos que calçava e que denunciavam sua chegada em qualquer ambiente. Espécie de pária entre seus próprios contemporâneos, naquela época Francisco vagava pelas ruas do bairro como um ser perdido de seu habitat, já que sequer jogava futebol, principal hábito daquela geração que lotava as manhãs e tardes dos finais de semana na Praça Presidente Roosevelt, a famosa “Pracinha do Jardim América”.

_ Aqui do lado morava a Dona Laura, que tinha uma filha chamada Flavia – observo, lembrando-me das fotos de aniversário de um velho álbum da minha família, onde Dona Laura e Flavia aparecem.

_ A Dona Laura foi embora, mas mãe dela mora ali naquela casa -, diz Francisco, apontando na direção da casa onde moravam Giovana e Elvira, duas irmãs, vizinhas e minhas primeiras musas.

_É mesmo? – comento. Penso um pouco. Novas lembranças.

_ Ali na esquina morava o Andrezinho e o Paulinho. O Andrezinho era craque. – destaco.

_ O irmão deles é o dono dessa bodega aqui, que era do seu Dário. O nome dele é Didi. Lembra dele?

_ Acho que lembro. Era mais velho que o Andrezinho, né? E também jogava muita bola.

Era uma época de muitos bons jogadores de futebol no Ceará, aquela da minha infância. Como Alexandre, lateral do Fortaleza que morava no quarteirão seguinte ao meu e que veio a ser campeão brasileiro em 1978, jogando pelo Guarani de Campinas, time que tinha Careca e Renato no elenco, jogadores que atuaram pela seleção brasileira. Praticamente todos os que jogavam os famosos torneios de futebol na pracinha do Jardim América tinham cisma com o Alexandre, isso porque ele se negava a participar das competições, alegando sempre que era jogador profissional, o que de fato era. “E se eu me machucar nesse racha, como é que fica?” costumava justificar.

_ Aquela ali é minha esposa – diz Francisco, apontando para uma senhora magrinha que varre a calçada do outro lado da rua. – Tem a minha idade, 62 anos. Tá com diabetes. Já eu não tenho nada, graças a Deus. E continuo morando ali, na mesma casa. Minha mãe e minha avó morreram e minhas irmãs foram morar noutro canto. Você conheceu minhas irmãs?

_ Sim, conheci suas irmãs. Foram minhas professoras. – revelo, lembrando que eram elas que me ensinavam os deveres escolares. Francisco demonstra satisfação com a informação.

Miro a casa de Francisco. Já não é a casa de muros baixos da minha infância. O portão vazado, no entanto, deixa entrever que a construção continua sendo a única de taipa no quarteirão.

Francisco aparenta ter problemas com álcool. Olhar esgazeado e gestos trêmulos, me confidencia que morou no Rio de Janeiro e em Recife.

_ Tô com 62 anos. Já vi muita coisa nesse mundo, a maioria ruim. Aqui pelo menos ainda tem alguma coisa boa. Por isso que voltei. Não é fácil, mas é melhor. Agora… tô aqui tentando lembrar de você, mas não consigo. Você era bem mais magro, não era?

_ Sim, eu era mais magro e também menino. É que a gente muda, né?

_ Sim, tudo passa, diz Francisco. Silêncio.

_ Ali ficava o botequim do seu Benedito, torcedor fanático do Ferroviário – retomo, apontando para a parede onde outrora havia uma porta.

_ Ele morreu, responde Francisco.

“Um morticínio”, penso. Resolvo ir embora.

_ Vou indo. Foi bom rever você, Francisco.

Ele me observa como da primeira vez, desconfiado, sem entender muito bem, mas reage com simpatia.

_ Aparece aí outro dia, pra gente conversar. Já já a bodega vai abrir. Nos finais de semana a coisa aqui é boa.- diz.

Contemplo a rua mais uma vez. Por um instante tenho a impressão de ver a Veraneio azul de meu pai parando junto ao portão da nossa antiga casa, hoje substituída por um sobrado. Desvio o olhar.

_ Ok, Francisco. Apareço sim. Boa sorte pra você.

_ Obrigado, responde ele.

Entro no carro e dou partida. Lentamente deixo aquele quarteirão da minha infância, redivivo numa manhã de sábado. Não sei se tornarei a voltar algum dia, mas é bom saber que todos continuam lá, onde sempre estiveram.

Duarte Dias

Cineasta, roteirista, curador audiovisual, fotógrafo e compositor, Duarte Dias foi premiado em vários festivais de música no Ceará, tendo lançado seu primeiro álbum autoral, "Jardim do Invento", em fevereiro de 2019. Com premiações em festivais de cinema no Brasil e no exterior, ocupa a cadeira de n° 36 da Academia Cearense de Cinema. Idealizador e diretor geral do FestFilmes - Festival do Audiovisual Luso Afro Brasileiro, e ex Coordenador de Política Audiovisual da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (2016-2019), desempenha, desde 2015, as funções de programador e curador do Cinema do Cineteatro São Luiz e Assessor de Políticas Culturais do Instituto Dragão do Mar (IDM), vinculado a Secult-CE.

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Cineasta, roteirista, curador audiovisual, fotógrafo e compositor, Duarte Dias foi premiado em vários festivais de música no Ceará, tendo lançado seu primeiro álbum autoral, "Jardim do Invento", em fevereiro de 2019. Com premiações em festivais de cinema no Brasil e no exterior, ocupa a cadeira de n° 36 da Academia Cearense de Cinema. Idealizador e diretor geral do FestFilmes - Festival do Audiovisual Luso Afro Brasileiro, e ex Coordenador de Política Audiovisual da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (2016-2019), desempenha, desde 2015, as funções de programador e curador do Cinema do Cineteatro São Luiz e Assessor de Políticas Culturais do Instituto Dragão do Mar (IDM), vinculado a Secult-CE.