“Uma lúgubre fatalidade cobriu a minha existência com um denso véu de nuvens turvas, o qual talvez só na morte eu consiga romper.” [Ernst Theodor Amadeus Hoffman, em O homem de areia – tradução: Luiz A. de Araújo. CONTOS FANTÁSTICOS DO SÉCULO XIX / Organização de Ítalo Calvino – São Paulo: Companhia das Letras, 2004; pág. 55].
“Ninguém sobre a face da Terra ajuda o próximo por puro altruísmo. Todo mundo espera uma retribuição qualquer, seja amor ou lealdade – ou conselho legal.” [Irving Wallace, em OS SETE MINUTOS. Círculo do Livro, pág. 99].
Domingo de carnaval. Madrugada. O carteado prossegue normalmente na aconchegante sala de estar da modesta casa de fuga ao massacrante cotidiano. As duplas fixas – anfitriã e amiga; irmão e cunhada – disputam seguidas partidas de biriba ou buraco, sem se quedar a fadigas ou desânimo. O televisor, esquecido em seu lugar de sempre, transmite, sem despertar qualquer interesse neles, o desfile das escolas de samba cariocas. Lá fora uma persistente chuvinha vai, aos poucos, saciando a sedenta terra e tornando bem ameno o clima do ambiente. De repente, uma ventania inesperada atiça as copas das mangueiras e cajueiros, agita as palhas dos coqueiros, assovia entre as frestas de portas e janelas, invade as dependências da casa e provoca arrepios e temores nas pessoas. A anfitriã, numa atitude não condizente com o seu jeito calmo e tranquilo de ser, mas com aspecto mórbido de quem sofreu um tétrico calafrio, levanta-se e lança sobre a mesa todas as cartas que mantinha nas mãos, ante olhares estupefatos dos parceiros do jogo. Canastra?! Não, não era.
O irmão se antecipa às mulheres e indaga:
– O que houve, mana? Você está bem?
– Não sei. Desculpem-me. Nada se me mostra claro… mas acabo de ser atingida por um pressentimento, um mau presságio, um agouro. Acho que algo deu errado com ele.
– Mas o quê, amiga? Com quem?
– Algo me diz, amiga, que aconteceu algo de errado com o meu marido. Não sei bem o quê. Só que isso me assusta… muito!
– Por que você não liga para o celular dele? – aduziu a cunhada.
– Eis aí uma boa ideia – arrematou o irmão.
E todos se envolveram na operação de desvendar o mistério que a ventania, subitânea e fria, impusera a todos eles.
Muitas foram as tentativas, todas infrutíferas. Não se dava o tão desejado atendimento.
O irmão, já assumindo o comando das ações, cuidou de acalmar o grupo agora sob sua liderança, argumentando que de nada adiantaria prosseguir com aquele desespero, na insistência vã de estabelecer um contato com o cunhado. Para ele, as ligações não se completavam por uma razão óbvia: o burburinho carnavalesco em que certamente o folião se encontrava. Tão logo fosse possível, ciente das insistentes buscas por contato, agora não mais em meio a tamanha barulheira… bem, é certo que cuidaria de retornar a ligação.
Alguém propôs uma rodada de vinho e, em silêncio, degustaram um delicioso bordô suave. Entenderam, então, que o mais razoável seria retomar o carteado, como forma até de relaxar as tensões, aliviar a pressão.
Lá fora, o apaziguador som dos pingos da chuva caindo teimosamente sobre o telhado, água que escorre das biqueiras, jogando-se na calçada de cimento e pedras. Mais adiante, a ladainha do coaxar recorrente dos sapos.
– É. Concordo. Vá ver ele está se esbaldando, talvez nem se lembrando de nós, nem pensando em mim… e eu aqui estragando a nossa alegria, o nosso bem-estar. Ao jogo, pois!
E a mulher fez um grande esforço para retomar a tranquilidade.
– E que Deus o mantenha vivo! – disse só para ela mesma.
(…)
Domingo de carnaval. Os ponteiros dos relógios analógicos avançam, com a mesma regularidade rítmica, para a posição de maior abertura, de maior distância entre eles – o maior apontando para cima e o menor para baixo. Na suíte do luxuoso e luxurioso motel, a jovem mulher vai se livrando dos efeitos do álcool – o rio caudaloso da tensão extrema agora deságua num mar de calmaria – e, conseguintemente, percebendo que o “facho” esfriara, já se convencendo de que, se não fora daquela vez, o desvirginamento só aconteceria se não mais em tão descabida aventura. E isso já não mantinha mais a mesma importância de poucas horas atrás. Perdeu a prioridade. Problema mais grave ainda reclamava solução. Não podia deixar-se abater, fragilizar. Apesar de tudo, tinha um nome a zelar, cumpria-lhe cuidar da sua reputação. Não iria permitir que este imprevisto vendaval a destruísse.
Ela precisava sair dali. E logo. Mas como?!
Enquanto cobria o corpo inerte do amante com a colcha da larga e confortável cama, avaliou criticamente todas as possibilidades, afastando, de chofre, as que se mostravam ser de alto risco. Concluiu, então, que não lhe restava outra opção: só o irmão poderia desatar o nó górdio que tanto a afligia, angustiava, constrangia. Embora, entre eles só houvesse ressentimentos, porquanto ela jamais admitiu a vida, a seu exclusivo ver, despudorada, devoluta, devassa, pecaminosa, que o desmiolado levava. Na outra ponta do cabo de guerra, o adepto do donjuanismo não aceitava as intervenções, as interferências de sua irmã mais nova, metida a conselheira, a chicote do mundo, quando, na verdade, não passava de uma mal-amada, enrustida, ou melhor, de uma “santinha do pau oco”.
A situação em que se envolvera não lhe dava margens a exigir, de quem quer que fosse, comportamentos que julgava apropriados. Essa era a regra do momento. Cabia-lhe obedecer sem questionar.
Ouviu, ao longe, as badaladas de um sino – “Deve ser de igreja”, pensou resignadamente – anunciando as seis horas da manhã de domingo. Lembrou-se vagamente do seu sonho de abraçar a vida contemplativa, sonho perdido em alguma curva do curso de sua existência terreal. Pegou decididamente o celular e ligou para o irmão. Quis enervar-se porque ninguém atendia. Acalmou-se quando ouviu a voz sempre distante dele:
– Não acredito que você se dispôs a ligar pra mim tão cedo, o dia mal começando. Já vou adiantando, irmãzinha mui querida, que não vou perder meu precioso tempo ouvindo seus sermões, por sinal chatíssimos, e que insisto em não aceitar os seus conselhos.
– Por favor, deixemos de lado as nossas arengas, as nossas desavenças, irmão meu. A bem da verdade, estou em apuros, numa situação por demais vexatória, pés e mãos atadas…
– Como é?! Você foi sequestrada?…
– Não, não. Graças a Deus, não! Mas preciso de você. Preciso muito de você. – E lágrimas quentes escorreram pelo rosto frio. A voz embargada denunciou estar ela se fragilizando.
– Calma! Evite desesperar-se… isso não ajuda em nada. Ainda não sei do que se trata, mas eu lhe garanto que vou ajudar. Não me sinto bem ouvindo choro de mulher… e você sabe muito bem disso. Eu quero que você se acalme. Bom. Agora, preste atenção. Eu preciso impor algumas condições, fazer algumas exigências.
– Lógico. Eu sei. Eu o conheço. Você não faria qualquer coisa – especialmente pra mim – a troco de nada. Vá lá. Diga o seu preço. Dentro das minhas posses, estou disposta a pagar.
– Não é muita coisa, não. Nada que vá além das suas possibilidades. Eu apenas quero que você me aceite como sou. Que me deixe ver a minha mãe sempre que me der na telha, com quem eu bem entender. Aliás, desejo que as minhas mulheres…
– Pra mim, tudo está muito claro. Eu estou em suas mãos… que elas sejam bondosas, ágeis e eficientes. Portanto, aceito todas as suas condições. Só lhe peço, imploro até: aja o mais rápido que puder. A coisa aqui está ficando insustentável, o ar está deixando de ser respirável.
– Ótimo. Menina, diga-me qual é o seu problema. Pra que inferno você bateu suas santas asinhas?
– Ouça-me, sem me interromper. Eu estou num quarto de motel. Ao pé da cama, aqui, bem à minha frente, coberto com o lençol da cama, jaz o corpo de um homem que se propôs a festejar comigo, no altar de Vênus, o ápice de uma improvável relação amorosa. Aventura de carnaval. Você, meu irmão, sabe muito bem o que estou dizendo. Em meio a uma crise de disfunção erétil, ele exagerou na dose do estimulador sexual e o coração não resistiu. Essa é a situação em que ora me encontro e que me obriga a implorar a sua ajuda. Por favor, irmão meu, me tira daqui.
– Eu vou tirar, pode ficar certa disso. Assumo este compromisso com você. Me diz o nome do motel.
– Não sei. Espera…
– Veja se tem aí algum cardápio… ou melhor, o chaveiro… procure a chave da suíte…
– Pronto. Suíte premium nº 4… Suspiros de amor…
– Eita! Conheço. Já estive aí, não num premium. Negócio pesado… pra quem tem bala na agulha.
– Pois é. Ele era bem apessoado. Simples, mas com bastante pano pra’s mangas.
– Tudo bem. Vamos à luta. É o seguinte, minha irmã. Eu vou desligar agora para traçar um plano perfeito, desses que não podem falhar. Logo, logo, eu ligo dando as coordenadas. Ah, faça assim: pegue o celular do “de cujus” e ligue pra mim. A partir de agora, as nossas conversas serão sempre através dele. Mas só atenda após a certeza de que sou eu. Evite acolher qualquer outro tipo de contato. Entendido?
– Sim.
– Nós não vamos fazer nada às pressas. Nada mesmo.
– Certo. Eu vou tentar me acalmar.
– Volto já a falar com você. Aja seguindo sempre as minhas orientações. Muita calma nesta hora. Desligando.
Nota do autor:
“Talvez, meu caro leitor, te convenças de que nada é mais fantástico e extraordinário do que a vida real e de que o escritor não é capaz de apresentá-la senão como um obscuro reflexo num espelho embaçado.” [O mesmo Hoffman, o mesmo conto fantástico (O homem de areia), a mesma coletânea (de Calvino), à pág. 62].