Edward P. Thompson nos ensinou que eventos sociais significativos não nascem como o sol numa hora determinada, mas são frutos de um fazer coletivo anterior no qual a mudança já existe. Os artigos de Celso Rocha de Barros e André Singer, na Folha de hoje, dispensaram esta lição. Singer, em interessante pegada, escorrega ao afirmar os últimos três anos como sendo “o vazio de uma oposição politicamente efetiva”. Celso, no mesmo sentido, afirma que “a disputa [pós-prisão de Lula] se deu com a extrema direita de um lado e ninguém do outro”. Em ambos, o afã de valorizar o evento hiper significativo que marcou a semana encerrada ontem acaba por exagerar na presentificação. E, em certa medida, dispensa boa parte do discurso histórico do Lula no último dia 10 de março no qual o líder agradeceu a quem resistiu com ele.
As frentes contrárias ao golpe de 2016, a Vigília Lula Livre, a luta contra as reformas feitas por movimentos sociais e sindicais em franca desvantagem, os 44,87% de votos para Haddad em 18 e a presença de PT, PSOL e PCdoB nos segundos turnos de 2020 não podem ser apagadas (ficando acima de 40% em Poa, SP, Vitória, Recife…). O atrapalho à PEC da Impunidade, a redução dos danos em todos os projetos antipopulares de Temer e Bolsonaro e o trabalho de formiguinha por dentro de instituições, igrejas, empresas, grupos de whatsapp e lares também não podem ser deixados de lado em favor da leitura um tanto messiânica. Quase sempre, esse aparecimento mágico do líder nos é apresentado com o charme weberiano da liderança carismática. Mas o caso aqui é outro. A reaparição de Lula no cenário nacional se deveu à continuidade de um trabalho de mobilização permanente, empreendido por partidos e movimentos sociais de esquerda, que sempre consideraram a recuperação de seus direitos políticos algo fundamental à nossa reconstrução democrática. Não poucas vezes quem esteve neste trabalho de mobilização foi observado como não estratégico, evitando assim a possibilidade de “resolver” a nossa desdemocratização com quaisquer alternativas que manteriam Lula preso ou solto sem direitos políticos. Na análise do resultado eleitoral das esquerdas em 2020, muitos ignoraram o peso político do fato da esquerda entrar num pleito com Lula ainda condenado. Nesse sentido, os textos de Celso Rocha de Barros e André Singer valorizam pouco a importância da estruturação e da ação partidária, por exemplo, do PT que foi capaz de manter o tema da suspeição de Moro e da Lava Jato ao longo de todos esses anos. Que líder sem partido forte suportaria tal humilhação? E aqui o termo partido quer dizer aquele que organiza a ação política, forma quadros e oferece uma orientação ao conjunto da sociedade. Lula é o maior líder do PT, mais estruturado partido nacional, que coordena relações com universidades e movimentos sociais e sindicais com alta capilaridade. O discurso que chegou à Globo na última terça e que foi admitido por Gilmar Mendes há algum tempo, já estava na boca das lideranças petistas e do próprio Lula desde 16. Qual a responsabilidade dos intelectuais que se demoraram em perfilar junto àqueles que apontavam os vícios de Moro?
Felizmente, não é o caso de Celso nem Singer. Contudo, não se pode deixar de registrar que, ao fazer tal análise, se responsabiliza menos quem muito colaborou para tudo isso: o “centro democrático”. Nossa situação chegou até aqui porque PSDB, DEM e MDB abraçaram a extrema-direita como forma de chegar e se manter no poder. Evitaram inclusive qualquer articulação parlamentar com a esquerda para defender interesses nacionais razoáveis. A Petrobrás que o diga. O que o Brasil assistiu não foi uma oposição ineficaz, mas um centro inexistente. Isso não pode ser aceito e nem desconsiderado daqui em diante. Nosso futuro não depende somente de quem sempre esteve contra as arbitrariedades que elegeram Bolsonaro, mas daqueles que com ele se aliaram. A esquerda está disposta à redemocratização até porque só ganha com ela. A direita deve dar provas de compromisso inequívoco com as regras do jogo democrático. Isso muda tudo.