Lula Lá: a crítica, o voto e o brilho nos olhos

Chama a atenção o entusiasmo e o brilho nos olhos com o qual o lançamento da pré-campanha do Lula foi recebido por uma multidão Brasil à fora. Ao que parece, muita gente vem se enchendo de esperança de que algo grande pode ser reconstruído no Brasil. Mais do que por quaisquer características encantadoras que ele tenha, essa empolgação generalizada também tem a ver com uma carência gigantesca, um vazio imenso, deixado pelo governo Bolsonaro em todas as pessoas que têm um mínimo de empatia e solidariedade, um mínimo de capacidade crítica e conhecimento da história do Brasil. Os quase 700 mil mortos da pandemia e o deboche do presidente; a apologia constante, com sorriso no rosto, da ditadura militar e da tortura; a economia em frangalhos, com inflação gigantesca e aumento da pobreza; as pessoas com fome e a miséria crescendo; a destruição ambiental e o massacre dos povos originários; tudo isso somado às ameaças constantes de golpe de Estado nos deixaram órfãos de um mínimo de bom senso no que diz respeito à direção do Estado brasileiro.

Precisamos derrotar Bolsonaro nas urnas e não há nenhuma alternativa possível para essa necessidade específica a não ser Lula. No “pacote Lula”, além de um sentimento de esperança no futuro e do acalento na alma de estarmos diante de uma figura e de muitos coletivos com pelo menos um mínimo de sensibilidade e empatia, vem também Geraldo Alckmin, um amplíssimo arco de alianças com setores conservadores e sabe-se lá mais o que. Contra o ensaio de fascismo, contra a possibilidade cada vez mais desenhada de golpe, contra a continuidade do martírio pelo qual a sociedade brasileira vem passando, vale a pena. É uma pena, mas vale. E a pena vale a ponto de entusiasmar-se, de deixar brilhar os olhos, de ir para cima de peito aberto na luta contra o fascismo. De emocionar-se. Bolsonaro nunca mais! Ditadura nunca mais! Genocídio nunca mais! Se a candidatura de Lula não tem muitos motivos para emocionar ninguém que faça uma análise mais detida do seu arco de alianças, do seu programa e mesmo do que foram os governos petistas, a luta pragmática e necessária contra o autoritarismo bolsonarista é razão suficiente.

Foto: NELSON ALMEIDA / AFP

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Mas, além de derrotar Bolsonaro nas urnas, precisamos derrotar o bolsonarismo nas ruas, nas casas, nos parlamentos, nos grupos de Whatsapp, em todos os lugares. Precisamos derrotar o bolsonarismo na sociedade. Compreender que Lula é a alternativa para derrotar Bolsonaro nas urnas e não entender que se erros do passado forem repetidos – e, sejamos honestos, até aqui não há sinais firmes de que não serão – talvez fique ainda mais difícil derrotar o bolsonarismo na sociedade parece ser uma leitura distorcida ou limitada da realidade. É compreensível, por isso, o caminho escolhido pelos setores da esquerda mais radical que defendem voto em candidaturas próprias no primeiro turno e apoio a Lula apenas no segundo. Entretanto, no cenário que se desenha, com o crescimento da possibilidade de não reconhecimento da derrota por parte de Bolsonaro e com alguma chance de vitória em primeiro turno para Lula, mesmo que muito pequena, me parece que o mais coerente é votar no PT desde o primeiro turno nessas eleições.

Neste sentido, o brilho nos olhos necessário para derrotar o fascismo, com o qual devemos fazer a campanha de Lula, não pode nos impedir de enxergar os limites que essa alternativa pode representar. Apoiar Lula, virar voto e ir às ruas empunhando bandeiras antifascistas – quaisquer que sejam – não precisa e não pode significar abandonar os balanços críticos dos muitos limites dos governos petistas. Embora o contraste com os governos Bolsonaro e Temer seja importante, não reconhecer os limites e os erros daquele período é correr o risco de repeti-los numa situação muito mais perigosa. Os setores da esquerda que não construíram os governos petistas e que fizeram – corretamente, diga-se de passagem – oposição a eles são fundamentais nessa tarefa. Aqui não se trata de buscar qualquer demarcação vazia nem de defender um muitas vezes abstrato “apoio crítico”. Apoio eleitoral, sobretudo se estamos lutando contra o fascismo, é apoio e pronto! Trata-se, apenas, de analisar a realidade com suas nuances.

Vale uma digressão, na qual entra uma lição do Ceará para o Brasil. Na semana passada, numa discussão levantada pelo deputado estadual Renato Roseno, do PSOL buscava, dentre outras coisas modificar o nome e o uso de um importante equipamento público pertencente ao complexo do Palácio da Abolição, sede do Governo do Ceará, que hoje serve como mausoléu e guarda os restos mortais de Humberto de Alencar Castelo Branco, primeiro presidente do nosso mais recente período ditatorial. Nessa discussão, a base do governo estadual, composta dentre outros partidos por PT e PDT, portanto construtores estaduais das candidaturas de Lula e Ciro Gomes à presidência da república, votou junto com bolsonaristas ferrenhos, defensores da ditadura e da tortura, para que a proposta não fosse aceita naquele momento. Por uma espécie de conveniência política – com o velho argumento de que há outras prioridades – se posicionaram todos juntos.

Em parte, o que nós vivemos hoje no Brasil – uma naturalização da defesa do regime militar, inclusive por parte do Presidente – tem a ver com o fato de que, por conveniência política; por achar que não era o caso de comprar determinados desgastes e enfrentamentos; por achar que a partir do momento em que chegou-se ao governo, as coisas seriam resolvidas nas negociações por cima; por ampliar o leque de alianças até englobar setores da extrema direita, que foram se reconstruindo; e por tantas outras razões, quando a esquerda esteve no poder, esses fantasmas autoritários não foram devidamente enfrentados, assim como não haviam sido na transição para a democracia. Quando não enfrentamos nossos fantasmas, é questão de tempo para que nos voltem a assombrar.

O que assusta no caso da Assembleia Legislativa do Ceará é ver deputadas/os da esquerda, em um contexto como esses em que qualquer tipo de mediação com o autoritarismo e com os autoritários já se mostrou absolutamente equivocado, num contexto de defesa aberta da ditadura por parte de parlamentares, membros do governo, Presidente da República, continuarem com esse tipo de relativização, por “conveniência política”. Em parte, a situação em que nós estamos hoje tem a ver com esse tipo de postura.

Essa – a da negociação excessiva, da conveniência política, da subestimação do autoritarismo – é apenas uma das facetas dos elementos importantes de balanço que precisamos fazer do passado, para olhar para o futuro com nitidez. Precisamos falar de Belo Monte, para não errarmos novamente com os povos originários; de Lei Antiterror, para não fortalecermos nunca mais o encarceramento em massa, a politização das polícias e o extermínio das juventudes negras e periféricas; poderíamos falar de megaeventos, para não naturalizar remoções forçadas. Cabe a nós seguirmos falando de tudo isso, inclusive durante a campanha! Cabe a nós seguirmos lembrando que se hoje vivemos uma das piores tragédias da vida política, social e econômica do Brasil, isso não significa que entre 2003 e 2016 tenhamos vivido um paraíso na Terra, e nem que equívocos daquele período tenham contribuído com a construção da situação atual.

Quanto maior for o apoio entusiasmado, emocionado, absolutamente envolvido e engajado à campanha de Lula, mais chances teremos de derrotar o fascismo. Não se faz campanha sem brilho nos olhos e começar a enterrar a ameaça autoritária é motivação mais que suficiente para isso. Não se conquista mentes e corações, não se espalha massivamente uma mensagem política, sem convicção. Quanto menos crítico esse apoio for, por outro lado, mais chances teremos de repetir os mesmos erros do passado e, mesmo eventualmente ganhando as eleições, preparar o terreno para um crescimento do bolsonarismo nos próximos anos. Se a esperança for ingênua, acrítica, simplesmente emocionada, a decepção poderá ser gigante e o caldo de oportunidades para o fortalecimento do bolsonarismo, atuando na oposição, tende a crescer.

Se a convicção move nossos corações, a crítica dá firmeza aos nossos passos. Fazer campanha não deve significar esquecer balanços críticos e, menos ainda, deixar-se levar por uma crença cega de que ganhar as eleições é suficiente. Vencê-las é necessário, apenas isso. Quase tão importante quanto eleger o Lula em 2022 é seguir criticando os equívocos dos governos petistas e refletindo sobre os limites da esquerda brasileira nas últimas décadas. A unidade e o acúmulo de forças são tão importantes quanto a permanência do balanço crítico, de dentro e de fora de um eventual governo. No caso da esquerda radical, melhor que seja de fora! Se, nessa dialética, a esquerda como um todo for capaz de avançar, traçaremos um bom caminho para vencer as eleições e seguir fortalecendo a luta contra o bolsonarismo. Se algum desses pilares deixar de existir, contudo, nos distanciaremos da capacidade de cumprir nossa tarefa histórica, que é gigantesca e nunca foi tão urgente.

Fonte da imagem: Carta Capital e pt.org.br

Rodrigo Santaella

Rodrigo Santaella é educador e militante do PSOL. Formado em Ciências Sociais pela UFC (2010), com mestrado em Ciência Política na UNICAMP (2013) e doutorado em Ciência Política na USP (2018), é professor do Instituto Federal do Ceará no Campus Caucaia e do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UECE.

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Rodrigo Santaella

Rodrigo Santaella é educador e militante do PSOL. Formado em Ciências Sociais pela UFC (2010), com mestrado em Ciência Política na UNICAMP (2013) e doutorado em Ciência Política na USP (2018), é professor do Instituto Federal do Ceará no Campus Caucaia e do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UECE.