A trajetória e o pensamento e Lélia Gonzalez devem ser entendidos considerando as dimensões coletivas dos protestos de rua, da imprensa alternativa, dos movimentos sociais e dos partidos políticos na construção democrática. Pai negro, ferroviário, e mãe índia, empregada doméstica, era a penúltima de 18 filhos. Aos 28 anos casou-se com um colega espanhol Luiz Carlos Gonzalez. A família não aceitou a união que acabou, em 1965, com seu suicídio. Em busca de cura e autoconhecimento, Lélia começou a estudar psicanálise e candomblé. Diagnosticada com diabetes ainda jovem, continuou a trabalhar, morrendo de infarto aos 59 anos.
Graduou-se em História, Geografia e Filosofia, fez mestrado em comunicação social e doutorado em antropologia. Foi professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Pontifícia Universidade Católica. Destacou-se por sua argumentação polêmica, sua capacidade de comunicação e de motivar estudantes à reflexão.
No início de 1970, Lélia assume sua negritude e publica uma de suas primeiras obras Mulher negra: um retrato. “Essa questão do branqueamento bateu forte em mim e eu sei que bate muito forte em muitos negros também. Há também o problema de que, na escola, a gente aprende aquelas baboseiras sobre os índios e os negros; na própria universidade o problema do negro não é tratado nos seus devidos termos.” Em 1982, escreveu Lugar de negro, com o argentino Carlos Hasenbalg. “O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos habitacionais dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço.”
Sua fala irreverente era próxima da oralidade de uma Griot que conta histórias a seu povo. Estudou os pensadores negros, a história e as tradições africanas, se dedicando à transformação da realidade de opressão e exclusão, em especial, das mulheres negras. É a grande referência teórica do Movimento Negro, sendo citada no Dicionário Mulheres do Brasil (2000), na Enciclopédia Encarta Africana (1999) e em Mulheres Negras do Brasil (2014).
Sua trajetória pessoal se confundia com a construção democrática coletiva, participando ativamente dos protestos de rua, dos movimentos sociais e dos partidos políticos. A conjuntura nacional e as grandes mudanças internacionais foram acompanhadas por Lélia, em particular as lutas indígenas, de organizações antirracistas e dos movimentos de mulheres, mas também as mobilizações pelos direitos civis, os protestos dos Panteras Negras e pelo fim do apartheid.
Nessa teia complexa de ideias e redes transnacionais de ativismo, seu pensamento tem uma dimensão anticolonial, antipatriarcal e anticapitalista. Lélia criou um conceito político-cultural para um entendimento da formação da identidade brasileira e de seus irmãos latino-americanos e caribenhos: a amefricanidade. Levou em conta a interdisciplinaridade, adotando categorias da psicanálise (denegação), da linguística, da antropologia, da política e da história.
Ainda pouco conhecida na academia brasileira, sua contribuição teórica tem atraído as novas gerações. Merecem ênfase: a perspectiva decolonial, inaugurando a crítica ao eurocentrismo das ciências sociais e do feminismo ocidental; a abordagem interseccional, envolvendo as dimensões da dominação sexual, de classe e de raça articuladas para dar forma à hierarquização social, bem como à construção de identidades coletivas. Ambas as análises mostram a atualidade e a interlocução latino-americana e caribenha da produção de saberes nascidos da ciência, da luta e da arte que marcaram sua curta existência e extensa obra.
Sua capacidade de investigação teórica se mostrou na crítica às ideologias e à hegemonia de dominação machista, branca e europeia, que forçou o povo negro a um lugar de submissão. Na militância, a interface entre cultura e política marcou a atuação de Lélia, para quem a linguagem precisava ser subvertida; o termo pretuguês foi cunhado por ela para se referir à língua falada no Brasil. Esteve à frente da criação do Movimento Negro Unificado, Instituto de Pesquisas das Culturas Negra, Nzinga Coletivo de Mulheres Negras, Olodum e Escola de Samba Quilombo. Além de contribuições para a imprensa alternativa, grupos teatrais e blocos afros, assessorou Cacá Diegues em seu filme Quilombo e colaborou com a produção dramatúrgica de Hilton Cobra para ampliar a presença de artistas negros no teatro brasileiro.
No contexto da resistência à ditadura militar, seus escritos e falas contribuíram para a formação dos que com ela conviveram e são reveladores de sua preocupação em articular as lutas mais amplas da sociedade com a demanda específica de negros, mulheres e homossexuais. Essa preocupação norteou suas campanhas para cargos públicos em 1982 e 1986.
Discutiu o papel do racismo, principal legado do mito da democracia racial, na internalização da superioridade do colonizador e do “Big Brother,” o imperialismo estadunidense. Lélia ultrapassou as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, bem como uma visão mitificada da África, incorporando na análise do processo histórico de Nuestra América a dinâmica cultural afrocentrada.
Em contraposição à perspectiva eurocêntrica do feminismo, propunha um movimento enraizado no caráter multirracial e pluricultural da América Latina, sendo pioneira no que hoje se conceitua como feminismo interseccional e decolonial. Lélia Gonzalez afirmou que o movimento latino-americano de mulheres repete práticas de exclusão racista, das quais amefricanas e ameríndias são testemunhas vivas, “convocadas, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza” (Gonzalez, 1983:15).
Latin American Studies Association/LASA, encontro acadêmico voltado para a produção científica sobre a América Latina, homenageou Lélia Gonzalez em 2020, nomeando o evento de Améfrica Ladina, termo que usava para se referir à formação do continente, com suas influências indígenas e africanas, além da ibérica. Um número especial da revista Lasa Forum discutiu as rupturas com o pensamento ocidental e os novos olhares para as formas de vida e de resistência na região, rompendo com as fronteiras linguísticas e nacionais.
As oportunas iniciativas ajudam a perceber a influência dos trabalhos de Lélia Gonzalez nas lutas contemporâneas do Continente.
Fontes de pesquisa
Gates Jr., Henry Louis and Appiah, Kwame Anthony
1999. Encarta Africana. Perseu Books and CD-Rom Microsoft.
Gonzalez, Lélia
1980 “A importância da organização de mulheres negras no processo de transformação social”, Rio de Janeiro, Raça e Classe, ano 2, n. 5.
1982 “A Mulher negra na sociedade brasileira (uma abordagem político-econômico[a])” In Luz Madel (org.). O lugar da mulher, estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro, Graal, v.1.
1983 “Por um feminismo afrolatinoamericano”, Revista Isis Internacional, n. 8, Rio de Janeiro, pp.12-20.
1983 “Racismo e sexismo na cultura brasileira” In Luiz Antônio Silva, Movimentos sociais, urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS, Capítulo 3 [Ciências Sociais Hoje]
1987 Festas populares no Brasil, Rio de Janeiro, Index.
1988. “A categoria político-cultural da amefricanidade.” In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93, pp 69-82.
2018 Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora.
Gonzalez, Lélia and Hasenbalg, Carlos
1982 Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero [Coleção Dois Pontos].
Ratts, Alex and Rios, Flavia
2010 Lélia Gonzalez: retratos do Brasil Negro. São Paulo: Selo Negro.
Rios, Flávia and Lima, Márcia
2020 Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar.
Schumaher, Maria Aparecida and Brazil, Erico Vital
2000 Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. Zahar editora.
2014 Mulheres negras do Brasil. Editora Senac, SP.