JOVITA FEITOSA: HEROÍNA DO CERAPIÓ

Não, Jovita não é uma atleta vencedora de Rally. Ela é, de fato, Antônia Alves Feitosa, natural do Sertão dos Inhamuns-CE, heroína da Guerra do Paraguai, com assento no Panteão dos Heróis da Pátria, sob o número 13 433.

A história de Jovita se reveste de efeito épico, em função de um ineditismo: ela é uma heroína de guerra, sem jamais ter pisado um campo de batalha.

Seguindo as pegadas dos velhos cronistas, achei quem a chamasse de mito fugaz, estrela cadente, meteorito…, mas, sem sair do campo do fogo e da luz, eu diria que Jovita fora apenas um FÓSFORO que, num dado momento, lançara luz sobre nossos equívocos históricos, envoltos numa perversa mediocridade.

Infelizmente, não posso oferecer uma descrição mais acurada dessa garota cearense (de 17 anos) que, do Piauí, partiu para uma aventura que excedia, em tudo, a sua condição de mulher adolescente, analfabeta, egressa desses remotos sertões…. Se eu tentasse compor-lhe um retrato, estaria a produzir ficção. E não é o caso, porque a história dela basta em si mesma. Jovita se fez personagem.

Só para contextualizar o título: a história do Piauí e do Ceará abraça-se, em glórias e desditas tantas,  que alguém do automobilismo teve a feliz ideia de fundir os dois vocábulos para nomear um rally que vara estes sertões… CERAPIÓ ou PIOCERÁ é um fenômeno linguístico, dado que a ordem dos elementos da composição não altera o teor semântico… Permanece sempre a mesma noção de travessia épica, de embate entre o humano e o meio rústico, neste mesmo chão que já absorvera lágrimas e suor de tantas levas de retirantes.

Muito embora o ronco dos motores contraste com o laconismo dos retirantes, resta, na exaustão dos atletas, um tributo (intencional ou não) aos caminheiros daquele continuado êxodo, em que cearenses peregrinavam em demanda das terras úmidas do Maranhão e, em dado momento, dos seringais do Norte, atravessando os “ínvios caminhos” do Piauí.

Voltemos a Jovita: Cruzando o seu destino, está a cidadezinha de Jaicós-PI…. No século XIX, o Piauí ainda era um semidescampado. Mas, entre as esparsas povoações, já existia Jaicós, que servia de entreposto aos retirantes cearenses. Ocorre que muitos arriavam seus matulões e encontravam meios de ficar por ali mesmo. Foi o caso do senhor Rogério, tio de Jovita Feitosa. Ele, com seus dons musicais, passou a fazer parte da bandinha da cidade. A sobrinha, órfã de mãe, desceu do Sertão dos Inhamuns-CE, e vamos encontrá-la, em 1865, morando com tio, naquela, ainda hoje, acanhada urbe.

Eis que rebenta a Guerra do Paraguai. O Brasil não contava com um exército regular. Teve, então, que apelar para o patriotismo a fim de compor uma força voluntária. (Ou não tão voluntária assim. O governo da província promoveu escaramuças atrás dos “involuntários”. Eu, por exemplo, tive um tataravô que foi amoitar-se numa furna, entre mocós, para fugir à guerra).

Esse não foi o caso de Jovita!…. É aí que entra o Inusitado dessa história: ela cortou o cabelo, trajou-se de homem, meteu-se entre os voluntários e (contrariados) e partiu de Jaicós para Teresina, (trajeto de 360km). Porém, na capital, foi dedurada por uma mulher. Desfeito o engodo, Jovita pranteia copiosamente. O presidente da província, Franklin Dória, cedeu aos apelos e autorizou o seu ingresso, no Segundo Corpo de Voluntários da Pátria. Ela passou, então, a ostentar a insígnia de 1° sargento… E, por incrível que pareça, vamos encontrá-la, partindo para São Luís, trajando farda e calça branca, com um saiote encarnado, para pegar um vapor rumo ao Sul.

O presidente da província assumiu o risco, mas era quase um imperativo popular… Em 1865, Teresina era uma pré-adolescente (de 12-13 anos), com uma gratidão impagável ao imperador, uma vez que ele não se opusera à iniciativa do conselheiro Saraiva de fundar a capital. Nela vivia-se, por assim dizer, um surto de patriotismo. Algo de tal sorte estúpido e bestial que nenhuma outra festa, cívica ou religiosa, ombreava com o 2 de dezembro, data do aniversário de Sua Majestade Imperial Dom Pedro II… E, como prenda desse enlevo, ofereceu-se o próprio nome da capital: Teresina é uma homenagem a Dona Teresa Cristina, esposa do monarca.

Na capital maranhense, enquanto se aviava um vapor para o Rio de Janeiro, Jovita experimenta o sabor de uma apoteose. Onde quer que estivesse, uma multidão acotovelava-se em torno dela…. Todos queriam tocar aquele mito, aquela Diana guerreira.

A senhora dona Manoela, uma socialite do tempo, declamou, com o coração aos pulos, uma poesia patriótica, em sua homenagem… Jovita é chamada à cena…. É ovacionada, coberta de flores… Ali mesmo, a distinta dama presenteia-a com um crucifixo de ouro, pendente de um cordão do mesmo metal, avaliados em 200 mil réis.

Findo o espetáculo, a cearense foi convidada a hospedar-se na residência do senhor Boaventura José Coimbra, abastado comerciante português, que a presenteara com um uniforme de fino pano azul. No trajeto para a residência de Boaventura, a moça foi seguida por um séquito de patriotas, com banda de música e prolongados vivas.

Se nada mais faltasse para coroar o mito, no dia da partida para o Sul, o capelão militar, Domingos da Costa Morais, saiu-se com um discurso de um acacianismo vexatório, do qual destaco esta pérola:

“Nova Judith!… Por ventura irás mostrar às hostes brasileiras a cabeça infanda do nefário Lopez?”

O exótico orador resolveu invocar remotas páginas bíblicas para lançar aquela pobre iletrada nessa hipérbole absurda. Tangidos por esses rebuscamentos ininteligíveis, os valentes piauienses rumaram para o campo de batalha, com Jovita a colher, em cada estada, os louros de uma guerra ainda por lutar.

No Recife, repetiu-se o mesmo frenesi de São Luís; igualmente em Salvador… Ali ela hospedou-se no Palácio da Presidência. Neste embalo, Jovita chega ao Rio.

Em terras fluminenses, depois de muita festa e tietagem, alguém se lembrou de que havia um fero inimigo a combater. O que só seria possível com homens fortes e bem treinados, não com meninas travestidas de soldados… Jovita então é dispensada. Por falta de qualificação, nem era possível aproveitá-la como enfermeira. Sugeriram-lhe uma vaga de vivandeira, mas ela rejeitou qualquer alvitre que não fosse o campo de batalha.

Ora, quem saiu de Jaicós, em busca de protagonismo, não iria contentar-se com a rotina dos “bivaques a servir os granadeiros”, como se referiu, pejorativamente, em determinado contexto, o seu conterrâneo, Marechal Castelo Branco.

Nem a audiência com Dom Pedro II adiantou… Jovita faz, então, o caminho de volta percorrendo os mesmos portos, tomada por uma solidão enervante, sem nenhuma sombra de reconhecimento… Parando em Teresina, antes de pegar caminho para Jaicós, é acolhida numa casa de família.

Em Jaicós, é recebida friamente pelos familiares…. Desambientada, pouco tempo, volta para o Rio. No dizer de um jornal carioca, ela “se tornara uma das elegantes do mundo equívoco.”

Jovita morava com uma amiga e estava de amizades com Guilherme Loot, um engenheiro inglês, contratado pela Cia City Improvement. Ele morava em outro endereço e sempre lhe enviava bilhetes, eivados de frases cálidas, em português.

Naquele dia, chega a ela um bilhete escrito em inglês. A moça procura um tradutor… Era uma despedida… O gringo já estava embarcado no paquete Oneida, rumo à Inglaterra.

Incrédula, impecavelmente trajada, Jovita corre ao hotel do moço e constata que ele realmente partira…. Entrega um envelope à camareira (uma escrava), com a intenção de que fosse enviado a Loot. Pede para adentrar o quarto… Como se demorava muito, a camareira foi vê-la. Lá encontrou-a em decúbito dorsal, na cama, com um punhal no peito… Jovita acabara de dar cabo da própria vida.

Jovita Alves Feitosa, do Sertão dos Inhamuns, para o Panteão dos Heróis da Pátria! … Heroína por si mesma… cumpriu a trajetória de uma personagem romântica à moda do seu tempo: jovem, impetuosa, ufanistas mente patriótica; fatalmente apaixonada e tomada por um desejo de evasão: evadiu-se no tempo, no espaço e na própria morte.

Não!… Jovita não é uma personagem fictícia…. É que a nossa realidade, ontem como hoje, está sempre a desafiar os nossos melhores romancistas.

          Ao meu estimado carioca, cearense por afinidade, com ascendência no Piauí, Dalton Rosado! Receba o meu abraço, neste dia do amigo.

Teresina, 20 de julho de 2024.

Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo (Prof. Macedo) nasceu em Picos, sertão do Piauí, em 1960. Graduado em Letras pela UFPI, leciona língua portuguesa e literatura, nas redes pública e privada, em Teresina.