Jesus: bebê pobre visitado pelos sem-nada e perseguido pelos poderosos, por Mauro Lopes

 A expectativa quanto ao nascimento de Jesus Cristo alimentada por séculos em Israel foi completamente frustrada. Esperava-se um Messias -título do rei ideal esperado, que seria Ungido no Templo pelo sumo sacerdote. Nasceu um bebê pobre, em solidão, saudado apenas por uns pastores mal-cheirosos e vistos como suspeitos pela sociedade.]

É isto, exatamente, o que nos informam as duas principais leituras das missas e celebrações da noite de Natal dos católicos, anglicanos e de outras denominações -trechos dos livros do profeta  Isaías e do evangelista Lucas.

O tema do nascimento de Jesus não diz respeito apenas à história ou à fé. Ele lança luz sobre as diferentes visões de Jesus na sociedade. Os fundamentalistas cristãos são vinculados à expectativa alimentada em Israel e não ao relato que nos fazem os Evangelhos. Outra corrente de aparência “piedosa” alimentou durante séculos uma versão higienizada de um Jesus loiro e de olhos azuis que recomendava benemerência em vez de amor.

Nos tempos que escorrem, a versão fundamentalista tem consequências concretas -e dramáticas- pois transforma Jesus num “cruzado” cuja missão seria combater os “infiéis”: os muçulmanos, o candomblé, a umbanda, os comunistas e até os cristãos que não seguem sua cartilha.

O que nos informam os textos?

A primeira leitura (Isaías 9, 1-6) diz-nos que era esperado um menino ao qual estavam destinados os títulos de Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-para-sempre e Príncipe da Paz (Is 9, 5 -na versão da Bíblia de Jerusalém). Que títulos eram esses?  Eles integravam o protocolo para a coroação do faraó (rei) do Egito à época. Títulos de poder e riqueza, portanto.

Esperava-se um Messias em 736, ano desse trecho de Isaías, a livrar o Reino do Norte da ameça terrível que o rondava, o da invasão imperialista da Assíria -á época, Israel estava dividido em dois reinos, o do norte, Judá, e o do sul, Israel. A invasão acabaria acontecendo pouco depois. O texto referia-se à espera do filho do rei Acaz, capaz de livrar o reino do terror assírio,  e tornou-se uma das principais referências para o Messias ansiado ao longo dos séculos.

E Lucas? O texto lucano frauda completamente tal expectativa. A cena utilizada na liturgia do Natal é Lc 2, 1-14.

No trecho selecionado, descreve-se o nascimento de Jesus tendo como pano de fundo um fato de dimensões globais, o recenseamento “em todo o mundo habitado” (v.1), porção do planeta dominada por Roma, com objetivo de mensurar sua dimensão humana e estabelecer os parâmetros para a tributação.  Os historiadores negam que tal recenseamento tenha ocorrido -no máximo, teria havido à época uma contagem restrita à região da Judeia. O redator do Evangelho buscou, com a extrapolação, contrapor um fato de dimensões universais ao nascimento de um bebê pobre, escondido na periferia do império.

Em função da contagem da população, marido e mulher, grávida, foram a Belém, cidade da família de José. Chegaram na casa de parentes de José e como “não havia um lugar para eles na sala” (v.7), arrancharam-se  no estábulo. O menino nasceu e foi colocado no comedouro dos animais, a manjedoura forrada com palha.

O primeiro aspecto que chama atenção para a cena, além do ambiente de pobreza que em nada lembra o que seria razoável para o aguardado “Conselheiro-maravilhoso”, é a solidão completa de José, Maria e seu bebê. Pouco versículos antes, Lucas descrevera o nascimento de João, filho de Zacarias e Isabel, que se tornaria anos depois o Batista. Mãe, pai e filho foram cercados pela atenção, carinho e alegria dos “vizinhos e parentes” (Lc 1, 58). É um fato importante para o redator do Evangelho. Se não fosse, não estaria lá. Por isso, é impactante o contraste com o nascimento de Jesus. José e Maria estavam hospedados na casa de parentes. Mas ninguém foi ao estábulo para ver o beber e saudá-los. Sozinhos.

Quem aparece? A escória. Um grupo de pastores (v, 16) malcheirosos, vindos diretamente de sua atividade de lida com o rebanho. Quem eram os pastores no contexto da sociedade em Israel à época? Eram vistos como tipos mais que suspeitos, ladrões, enganadores e pecadores. Eram desconsiderados, ridicularizados pelos fundamentalistas de então (o grupo dos fariseus) porque não seguiam as prescrições da Torá -eram 613 regras! Vivendo no campo, ao relento, os pastores não obedeciam os rituais que regulavam a vida religiosa, social e legal do judaísmo.

Eram os perfeitos “zé-ninguém”. Como os pobres de hoje, em especial numa sociedade com as elites pautadas pelo sentimento escravocrata, como o caso brasileiro.

Pois é essa a gente que foi admirar e saudar a chegada do Menino pobre. A cena nada tem de idílica e adocicada, ao contrário das versões do cristianismo falsificado. Imagine o odor de um estábulo. Imagine agora o odor nesse estábulo quando adentra um grupo de pastores fedidos. Esta é a cena que está no texto -e não outra.

Eram gente como os sem terra, os sem teto, os refugiados, os pobres das periferias, os sem-nada do Brasil. Não possuíam direitos civis -pode parecer um escândalo esta frase, mas não é a situação dos sem nada atualmente? Um ditado rabínico popular à época dizia: “Nenhuma classe no mundo é tão desprezível quanto a classe dos pastores”. Não é este o sentimento das elites em relação aos sem terra, sem teto e outros? Não os consideram “vagabundos” e “desprezíveis”.

Como os ricos e poderosos reagiram ao nascimento de Jesus? Lucas não nos informa, mas no Evangelho de Mateus há uma descrição minuciosa (Mateus, 2, 1-18). Quem era, na sociedade judaica à época, o símbolo do poder e da emanação da riqueza? O rei Herodes. Não era o Trump (esse era Otávio Augusto, o imperador romano). Era alguém como um Bolsonaro.

Chegaram ao palácio de Herodes uns viajantes meio amalucados, astrólogos, que o texto designa como “magos”, afirmando que havia nascido “o rei dos judeus” (v.1). Herodes ficou “alarmado” (v.3) e os enviou a Belém, terra onde as profecias indicavam o nascimento do Messias. Mandou que na volta o procurassem de novo com um relato sobre o bebê, “para que eu também vá homenageá-lo” (v. 8). Seu plano era bem outro. Os astrólogos tiveram uma intuição (“avisados em sonho” – v.12) de qual era a real intenção de Herodes e voltaram a seu país por outro caminho.

Herodes, “enfurecido” (v.16) reagiu como os ricos e poderosos de todos os tempos: “mandou matar, em Belém e em todo seu território, todos os meninos de dois anos para baixo”. José, que entendera o risco que corria seu bebê (v.13.14), escapara para o Egito antes do massacre.

O Jesus do relato dos Evangelhos foi admirado e saudado pelos sem terra, sem teto, pelos periféricos e periféricas, representados pelos pastores. Os ricos e poderosos, simbolizados por Herodes, reagiram com ódio, medo e violência. Tem sido assim ao longo da história.

A liturgia do Natal captura esse ambiente de contraste entre a pobreza-saudação dos marginalizados ao bebê nascido no estábulo e a violência que o cerca.

E depois?

O que seria de se esperar num cristianismo de confrontação, que celebra a chegada de um cruzado ou de um cristianismo idílico? Que nos dias seguintes ao nascimento do bebê fossem apresentadas cena de vitória, como um desfile militar ou, no caso do “cristianismo água-com-açúcar”, cenas de alegria em tons pasteis.

Mas não é isso que acontece. Os pontos altos da liturgia dos dias seguintes ao nascimento de Jesus são:  o assassinato de Estevão, membro das primeiras comunidades cristãs, apedrejado em Jerusalém (dia 26), e o massacre dos meninos ordenado por Herodes (dia 28).

Quem captou com profundidade o sentido do nascimento de Jesus à luz desse roteiro litúrgico foi Edith Stein, mártir do povo judeu, mística e profeta assassinada na câmara de gás em  9 de agosto de 1942 em Auschwitz .

Ela escreveu dez anos antes de sua morte e três anos antes de se tornar monja carmelita, uma conferência sob o título “O Segredo do Natal”*. Separei dois parágrafos crucias e tragicamente belos:

“Quando os dias ficam cada vez mais curtos, quando caem os primeiros flocos de neve (normal, no inverno alemão), então surgem suavemente os primeiros pensamentos natalinos. Destas simples palavras emana um encanto ao qual é difícil um coração ficar indiferente. Mesmo os que têm uma fé diferente, ou os infiéis, para os quais a antiga história da criança de Belém nada significa, preparam-se para a festa e pensam, em como acender um raio de alegria em toda parte. É como uma correnteza quente de amor perpassando toda a terra, meses e semanas antes. Uma festa de amor e de alegria. (…)

Cada um de nós talvez já tenha experimentado tal felicidade natalina. Mas, até aqui, o céu e a terra não se uniram. Também hoje a estrela de Belém é uma estrela na noite escura. Já, no segundo dia, a Igreja tira as vestes festivas e se reveste com a cor do sangue e, no quarto dia, de cores enlutadas. Estêvão, o protomártir, que primeiro seguiu o Senhor para a morte, e os santos inocentes, as criancinhas de Belém de Judá, mortas cruelmente por mãos de algozes, estão ao redor da criança no presépio. O que quer dizer isto? Onde está o júbilo das potências celestes? Onde está a tranquila bem-aventurança da noite santa? Onde está a paz na terra? ‘Paz na terra aos homens de boa vontade’. Mas, nem todos têm boa vontade”.

Para encerra, socorro-de de padre Júlio Lancellotti, responsável pela Pastoral do Povo da Rua em São Paulo e hoje uma referência de compaixão que ultrapassa em muito as fronteiras do catolicismo. Ele enviou por seus perfis nas redes sociais uma mensagem de Natal escrita originalmente pelo biblista italiano Fernando Armellini. Ela resume o mais exato sentido do nascimento de Jesus:

A imagem da manjedoura é o questionamento decisivo que Deus, o Deus e Pai de Jesus Cristo, faz a cada homem e mulher de todos os tempos: 

“Se vocês procuram um Deus forte, potente, esplendoroso, glorioso, procurem outro; não sou eu!”

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* Edith Stein, O Segredo do Natal, Editora da Universidade do Sagrado Coração, Bauru, 1999, p. 11.15 (Texto originalmente publicado em Brasil 247 – Mauro Lopes é jornalista)

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