“JÂNIO SURROU LOTT”¹

“Hoje sou a saudade imperial

Do que já na distância de mim vi…

Eu próprio sou aquilo que perdi…”²

 

Além do autodidatismo, embora em termos de educação formal – ou, melhor dizendo, até para recuperar uma expressão bem mais próxima da realidade da época, grau ou nível de escolaridade – tenha apenas concluído o quarto ano primário em escola mista, de uma única sala de aula e turma heterogênea, com professorinha quase sem formação pedagógica e com conhecimento de mundo restrito à pobre região em que habitavam (ela e seus alunos), com escassez de recursos e sobras de boa vontade, lá nas brenhas do sertão brabo, isso há quase um século, e do perfeccionismo, sempre unindo zelo e rigor em tudo o que se dispunha a fazer – e fazia com esmero e dedicação, in extremis, não admitindo, em hipótese alguma, qualquer tipo de falha, omissão ou erro –, percebia-se nele uma mescla quase perfeita de inteligência, competência e habilidade. Ele era um artífice em plenitude, proficiente e criativo, apesar das mãos ásperas, calosas, e dedos que não mais sequer se pareciam com aqueles que, com naturalidade e maestria, bailaram sobre as tensas cordas de uma viola, ora plangente, lamuriosa, ora prazenteira, jubilosa, delas extraindo notas melódicas que davam ritmo musical aos repentes, à poesia matuta, tais como os martelos, agalopados ou alagoanos, de dez versos decassílabos (“Nos dez pés de martelo alagoano”) e os galopes à beira mar, ou décimas de onze sílabas que se embalam com a envolvente sonoridade das ondas marítimas, aliás, uma criação bem cearense (“Nos dez pés de galope na beira do mar”).

Em criança, no curso da década de 50, ganhei dele alguns presentes saídos diretamente da sua bancada de carpinteiro – com prensas, martelos, serrotes de tamanhos variados, plainas, puas, trados, torqueses, formões, limas, grosas, esquadros, compassos, régua, lixas, cola, parafusos, pregos, tachas, etc. –, miniaturas perfeitas do que se oferecia, à época, como opções de meios de transporte. Três deles me marcaram indelevelmente, os quais ainda guardo na memória carcomida pelo tempo, imagens que se mantêm íntegras pela ação balsâmica e conservante da saudade imorredoura e que me remetem à mais esplendorosa fase da minha infância saudável, bonançosa, irrequieta.

É o caso, por exemplo, da charrete de fino acabamento, em madeira cedro, com assento de encosto e capota retrátil de arame e pano (nesse específico detalhe, com a participação da minha mãe que, além de alfabetizadora de renome, era costureira de mancheias: bonitos e vistosos eram os vestidinhos que embelezavam as bonecas de pano das minhas irmãs, todos por ela criados e cosidos em máquina de costura PFAFF – Para fazer a família feliz, segundo alguns –, a pedal, com remates de mãos extremamente habilidosas). O presente me foi entregue já atrelado, com arreamento em couro, a um robusto cavalo branco de matéria plástica com patas guarnecidas de rodinhas vermelhas em eixos desnivelados que, em movimento, faziam-no galopar – meti inveja em muitos garotos que não podiam gozar dessas delícias por não terem pais tão hábeis, tão amoráveis, tão disponíveis.

Num momento de muita inspiração, o “mestre” recolheu, antes de ir para o lixo, uma lata vazia de óleo de caroço de algodão (de inúmeras serventias, desde instrumento de medição de grãos – milho, feijão, arroz e até farinha – em feiras e bodegas, até recipiente para encher canecas de madeira com água recolhida de cacimbas cavadas em leitos secos de rios, para transporte em lombo de jumento ou burro, isso quando não virava funil ou lamparina em oficinas de ferragens), da então tradicional marca Pajeú – a da negrinha de duas tranças laterais, vestidinho vermelho com bolinhas brancas, avental preso por chamativo laço às costas, bandeja de frituras nas mãos, o pé direito apoiado na bolinha que encimava a letra “j” e a perna esquerda solta no ar e com abertura que lhe dava graça, singeleza e equilíbrio (se você, respeitável leitora ou leitor, é das antigas, sabe então do que estou falando) –, e, com arte, produziu uma locomotiva em miniatura, com base em madeira trabalhada para tal fim, rica em detalhes como cabine, passarelas laterais, limpa-trilhos frontal, engate traseiro e rodas – a da frente com mecanismo de direção que me permitia fazer curvas em ângulos de cerca de 45 graus. Há aqui um detalhe que não posso deixar passar ao largo; ei-lo: para dotá-las de aparência das originais, ele optou, na confecção das rodinhas, pelo aproveitamento de carreteis de linha de madeira (convindo lembrar ser costureira a eterna parceira dele); serrou-os ao meio, introduziu pequenas hastes de arame espesso nos orifícios centrais, prendendo cada par aos sistemas de molas já afixados à base de madeira da locomotiva. O chefe dele, agrônomo, e padrinho meu, de fogueira junina, ao vê-la em movimento encantou-se, virou criança, jogou fora a capa de doutor que o tornava diferente de todos nós e até causava um certo distanciamento, sentou-se no chão cimentado da calçada da casa em que morávamos, cruzou gravemente as pernas e não se conteve ante o que via: Perfeita! Perfeitíssima! Alguns dias depois, dele ganhei um vagão de passageiros de matéria plástica, de cor marrom, portas e degraus de acesso, janelinhas e rodinhas. O engatamento à locomotiva surgiu de mais um minúsculo artefato criado pelo artífice que logo providenciou, também com aproveitamento de lata de óleo vazia, um vagão para transporte de cargas. E o meu trem não dependia de via férrea para trafegar triunfante pelas calçadas da vizinhança, sob olhares de encantamento e, por que não dizer, de inveja também.

Em meados de 1960, mais precisamente na abertura do sempre festivo mês de junho, ele me presenteou, em face do meu oitavo aniversário, com uma kombi³ produzida artesanalmente, a partir do reaproveitamento de latas de leite em pó, na qual incorporou, com propósito logo declarado, alguns ingredientes de forte apelo político. Adiante esclareço.

A campanha presidencial visando à sucessão de Juscelino Kubitschek, o mineiro que provocou a mudança do eixo geográfico do poder republicano, interiorizando-o, iniciada no ano anterior (1959), já se encorpava e, até mesmo em cidades interioranas como a minha terra natal – Baturité, metrópole em torno da qual gravitavam nove municípios distribuídos entre o sertão e a serra –, fervilhava em eventos sociais ou políticos, alimentava os colóquios, as conversas, os debates e as discussões, e ganhava praças e ruas. Os partidos considerados situacionistas (o PTB, o PSD e alguns outros de menor expressão) ingressaram no embate com chapa encabeçada pelo marechal Henrique Teixeira Lott, ministro de JK, formando dupla com João Goulart, então concorrente à reeleição na condição de vice. A oposição, basicamente a UDN, abraçara a candidatura do então governador de São Paulo, lançada por partidos nanicos, apostando seriamente no fenômeno da época, Jânio da Silva Quadros, e confiando ao ex-governador mineiro Milton Campos a difícil tarefa de alcançar, pelo voto popular, a vice-presidência. No fiel da balança, empunhando a bandeira de partido inexpressivo (o PSP), o sonho impossível do então prefeito paulistano, Adhemar de Barros, contra quem pesavam denúncias de corrupção, de desvios de verbas destinadas a obras públicas para a então famigerada ”caixinha”, e eram dirigidas frases depreciativas como “Um corrupto de marca maior!” ou “Ele rouba, mas faz”.

O símbolo de campanha de Lott era a espada (“É fabricada com aço nacional” para combater “Essa vassoura […] de piaçava americana”); o de Jânio, a vassoura (“Para varrer a bandalheira”); e o de Adhemar, o trevo de quatro folhas.

Pois bem. O “mestre”, por influência de lideranças políticas regionais, pessedistas declarados, contestou a “aventura perigosa” que representava a proposta da “vassoura” e, destemidamente, empunhou a legalista “espada” do marechal. Virou cabo eleitoral de Lott e Jango. Usava na altura do peito esquerdo, com incontido entusiasmo patriótico, o broche símbolo da sua escolha cidadã.

E a minha kombi de brinquedo trazia no teto o desenho, centralizado, de uma grande espada lottiana, em cuja ponta fora fixado um projetor de lanterna em desuso para, segundo o artífice, servir de irradiadora e propagar, pelos ambientes domésticos, incluindo a calçada, tudo o que dissesse respeito aos candidatos da família. E eu, coração menino, fiel seguidor dos princípios defendidos pelos meus pais, cantava a plenos pulmões, imaginando a amplificação de minha voz pueril pela irradiadora instalada na minha kombi, os jingles de Lott: “De Leste a Oeste / De Sul a Norte / Na terra brasileira / É uma bandeira / O marechal Teixeira Lott” ou, em resposta ao “Varre, vassourinha” janista, “O povo sabe, sabe, sabe, não se engana / Essa vassoura é de piaçava americana / Mas a espada do nosso marechal / É fabricada com aço nacional”.

Ocorreu, entretanto, que Jânio, cuja estreia se dera como vereador paulistano aos trinta, arrimado numa estupenda votação, elegendo-se, em sequência, prefeito paulistano e governador do mais importante estado brasileiro, aos quarenta e três era ungido como presidente da República com o voto de confiança de mais de cinco milhões e seiscentos mil compatriotas, fantásticos 48,26% dos votos válidos, submetendo o marechal da espada a uma derrota fragorosa. “Jânio surrou Lott” e João Goulart bateu em Milton Campos na disputa pela vice-presidência, confirmando o vitorioso encaminhamento do Movimento Jan-Jan.

O “mestre” sofria assim uma dura frustração que iria acompanhá-lo por alguns anos. E eu, com ele, experimentava o ácido sabor da derrota, da decepção. Quanto à kombi, recolhi-a à garagem, lá permanecendo por um longo período, só retornando às normais atividades após removidos os itens que a caracterizavam como instrumento de política.

Passados exatos seis meses e vinte e três dias da posse como mandatário da Nação, o homem da vassoura, minoritário no Congresso, sem base de sustentação política, a “fé inabalável em si próprio”, dotado de personalidade excêntrica, desequilíbrio emocional e moralidade farisaica, hipócrita, e chegado a romances de fim de noite e a generosas e recorrentes doses de uísque4 e 5, enviou a sua carta-renúncia ao Congresso Nacional que prontamente a acolheu.

Sobre a estratégia suicida posta em prática por Jânio visando à conquista do poder absoluto, assim se pronunciou o renomado jornalista Elio Gaspari: “Egocêntrico e megalomaníaco, Jânio concebera um golpe primitivo, desconexo, em que não havia lugar para cúmplices, só para súditos. A desarticulação que deveria ter sido a tessitura do manto real foi-lhe mortalha.”6

E as cortinas do teatro político nacional então se abriram para a longa encenação de um drama cujo script, pendulando entre o comunismo e o autoritarismo, arrastou-se por décadas, com fortes pinceladas, cor de sangue, de tragédias humanas, com o povo submisso ao jugo do regime de exceção por alguém rotulado de “anos de chumbo”.

Quanto a mim, hoje só me permito assinalar que a charrete, a locomotiva e a kombi, como imagens incrustadas na minha memória profunda, resistem à ação do tempo. Em nome do pai. Do meu pai.

 

¹ Elio Gaspari, em A ditadura derrotada – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014; pág. 68.

² Fernando Pessoa, em Poesias ocultistas – organização, seleção e apresentação de João Alves das Neves – 2ª ed. – São Paulo: Aquariana, 1996; pág. 56.

³ Data de 1953 o começo da montagem da kombi no Brasil, pela então Brasmotor. Só em setembro de 1957, a linha de produção da Volkswagen no Brasil concluiu a montagem da sua primeira kombi no país. Não sei precisar como o meu pai manteve contato com esse tipo de veículo.

4 Elio Gaspari, em obra já citada, à págs. 69 e 70.

5 Consta que, indagado por repórter sobre o consumo de uísque, Jânio teria respondido, no seu estilo empolado: “Bebo-o por ser líquido; sólido fora, comê-lo-ia”.

6 Em obra já citada, à pág. 72.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.