A imprensa livre do dinheiro do poder público e das estatais: seria melhor ou pior? – Parte 10 – por Osvaldo Euclides

O golpe de 1964, que meteu o Brasil numa escuridão de quase trinta anos, evitou ser chamado de Golpe. Preferiu ser chamado de ‘Revolução de 1964’, embora de revolução tivesse pouco. Os militares e os civis que o articularam tiveram o apoio da imprensa tradicional e o golpe foi qualificado de revolução por décadas (embora um jornalista como Carlos Heitor Cony denunciasse a farsa e chamasse a revolução de golpe apenas poucos dias depois). Também foi dito que a tomada do poder era para atender o desejo do povo, e os argumentos para a cruzada moral eram dois: o perigo comunista e a corrupção. O Brasil corria (diziam eles) o perigo de cair num abismo, avermelhar numa grande “república sindicalista”.

O movimento das “Diretas Já”,  vinte anos depois do golpe de 64, que levou brasileiros às ruas em gigantescos comícios, não foi notícia na imprensa tradicional por meses, embora mobilizasse cada vez maior número de pessoas e penetrasse cada vez mais nas diversas faixas da sociedade, ganhando simpatia a chance de cada brasileiro votar para escolher um presidente, e não ter de engolir mais um general que tivesse quatro estrelas. Os brasileiros se mobilizavam e nada era noticiado. Foi preciso que um então obscuro jornal paulistano quebrasse a unanimidade e disso fizesse alarde (foi a última vez que um jornal se fez grande pelo jornalismo). Quando São Paulo colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas pedindo para votar para presidente, uma rede de TV mostrou o evento monstro como se fosse a festinha do aniversário da cidade.

Quando o Brasil, em 1984, ficou entre Paulo Maluf e Tancredo Neves para escolher seu presidente através do voto de senadores e de deputados federais, a imprensa tradicional ficou ao lado de Tancredo e contra Maluf. As notícias eram assim: “O candidato da Frente Liberal-Democrata Tancredo Neves deu conferência ontem no Hotel Nacional em Brasília para um auditório lotado de líderes políticos e empresariais.” Já sobre Maluf: “Paulo Maluf foi visto ontem à noite entrando no Hotel Nacional para uma palestra dirigida a simpatizantes.” Ninguém reclamou, mas isso é engajamento, não jornalismo.

Depois do golpe de 1964, o primeiro presidente eleito pelo voto foi Fernando Collor, em 1989. Praticamente na véspera da votação final em segundo turno (Lula x Collor), houve um debate decisivo. Lula foi melhor no debate. Ou houve empate, noutra hipótese. Mas a mesma televisão mostrou uma edição resumida com os melhores momentos de Collor e os piores momentos de Lula. Deu no que deu, Collor venceu a eleição.

É imensa a força da imprensa. É descomunal a força da imprensa quando forma um consenso. É um perigo a força da imprensa quando evita o bom debate, cria a sua própria verdade e a impõe dia após dia. É a imagem do abismo.

É o óbvio ululante, mas precisa ser lembrado que a política é o jogo em que se decide quem vai ter o poder. E que a economia é o jogo em que se decide quem vai ser beneficiado objetivamente pelo exercício desse poder na gestão do dinheiro e da máquina pública. Num país com as características do Brasil, a imprensa é o palco privilegiado da política e da economia. Do poder, portanto. E a imprensa brasileira tem lado, sempre teve.

Não é um problema que o jornal A, a revista B, a televisão C e a rádio D tenham suas preferências, simpatias e convicções ideológicas, políticas, partidárias, econômicas, desde que as defendam de maneira aberta e firme. Mas não é aceitável que (sobretudo rádios e televisões, que são concessões públicas) só divulguem um ponto de vista, um único ângulo de todas as questões. Não é aceitável que façam isso de maneira disfarçada, misturando informação com opinião, manipulando a boa fé de leitores, ouvintes e telespectadores, quase todos incapazes de perceber as especificidades do jornalismo. Isso não merece o nome de liberdade de expressão, isso não colabora com a democracia.

Em 2016, o Brasil viveu mais uma quebra institucional. Uma eleição normal teve seus efeitos cancelados. Também se debateu se foi ou não um golpe. E a imprensa tradicional ajudou a criar o clima, tomou partido e como que apostou sua força e suas fichas num projeto que não foi aprovado nas eleições (nem debatido minimamente foi). Um projeto radical, com ‘reformas’ quase fanáticas, um “pacote” pronto, elaborado em gabinetes Deus sabe de quem. Estamos no meio do desastre desse projeto.

Em 2018, espera-se que o povo seja chamado para dizer de novo o que quer do governo, e quem quer para o governo. (Exige-se algum esforço para convencer o eleitor de que desta vez seu voto será respeitado.) Os nomes estão postos e a imprensa já deixou claro quem ela quer, e quem ela não aceita. E com a imprensa parece estar alinhadas a mais alta hierarquia do Poder Judiciário e a maioria do Poder Legislativo. (Preparem-se para o que o Congresso votará imediatamente depois da eleição)

Do que foi dito acima alguma coisa pode ser nova, alguma coisa pode ser importante. Mas, para quem é do ramo, nada do que é importante é novo, nada do que é novo é importante. O que há de novo e importante, e tem menos de dez anos, é a existência de uma pequena imprensa de blogs. O que há de especial nela é que: ela nasce das entranhas da grande imprensa (feita por profissionais que brilharam e resolveram ter sua própria tribuna); ela tem posição definida e assumida (a maioria de esquerda, alguns de direita, uns são ainda mais específicos e fazem campanha contra ou a favor de algo ou alguém); não manipulam, pois tudo que costumam divulgar é opinião (não a misturam com a informação), e praticamente todo texto é assinado por alguém minimamente qualificado, seja jornalista ou não.

Sua legitimidade é questionada pela imprensa tradicional porque ela não tem estrutura expressiva de captação de informação. Esquece este argumento, que quase toda a informação divulgada no país é de fonte pública, oficial – ninguém é dela proprietário, a todos ela pertence. Assim como esquece que se trata de uma imprensa de opinião.

No debate que esta sequência de textos propõe, sobre a verba de propaganda do poder público e das estatais, dirigida à imprensa, esses blogs independentes tiveram toda a sua verba oficial cortada, todos os seus contratos de apoio rompidos pelo vice que tomou posse do Governo Federal em 2016. Como foi dito no texto 5 desta sequência:

“As empresas privadas de comunicação tiveram reforço altamente expressivo de verbas de publicidade, mas apenas as grandes e tradicionais. O novo governante cortou completamente as verbas para os veículos eletrônicos que fazem jornalismo de opinião (os sites que se dizem independentes, mas efetivamente são de centro ou de esquerda, e que a mídia tradicional, que se diz independente, mas é de centro ou de direita, chama de “blogs sujos”). Noutro patamar, uma revista como a Carta Capital, que tem qualidade de conteúdo e números razoáveis de circulação, também foi para a “lista” do bloqueio da verba pública e de estatais, porque sabe-se que ela não aderirá ao novo governante.”

Isso é discriminação comercial e perseguição política com dinheiro do contribuinte. Não tem nada a ver com moralidade ou eficiência. Está muito mais próximo de um crime explícito contra a liberdade de imprensa, cometido a céu aberto, com dinheiro público (do orçamento e das estatais).

As eleições presidenciais de 2018 estão às portas e a imprensa tradicional (com alcance de de dezenas de milhões) e a imprensa alternativa (com audiência de centenas de milhares) vão dar diferentes versões e opiniões. A imprensa tradicional tem agora seus atos expostos, avaliados e contestados quase em tempo real. Veremos breve se isso é suficientemente novo e importante para promover alguma mudança.

Imprensa, poder e política. Isso não tem nada a ver com a verdade, nem com justiça, nem com moralidade. Mas tem tudo a ver com o que vai acontecer com o Brasil. Mais do que as paixões e a democracia, são os interesses que estarão em jogo (o presidente eleito terá um orçamento que caminha para dois trilhões de reais por ano).

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.