No semáforo, um corpo esquálido, curvado, com passos arrastados se projeta em direção aos carros parados. Nas mãos sustenta cartaz em que é possível ler: “estou com fome. Por favor, me ajude”. Ignorado, o sujeito volta ao canto da calçada e o fluxo de veículos se restabelece. Ali é possível ver que o homem não está sozinho, mulher e filhos se amontoam num canto protegendo-se do sol e do calor, numa sombra estreita. Ela com olhar triste e braço estendido em busca da comiseração de quem passa sem percebê-la. Os filhos, três pequenas crianças de idades indiscerníveis, envolvem-se em interações próprias de uma infância que resiste. Essa cena que faz parte de nosso cotidiano encontra reflexo em tempos passados de nossa experiência social.
“A pior coisa do mundo”, assim a escritora negra e favelada Carolina Maria de Jesus, em seu livro Quarto de Despejo (1960), descreveu a dor da fome que se sente, que atravessa o corpo, que corrói as entranhas. E foi compreendendo como a miséria dominava sua vida que sentenciou: “Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito”. Percebeu que o céu, as árvores, as pessoas, o ambiente que a rodeava amarelavam quando a dor da fome se tornava quase insuportável. A cor amarela tingia o seu mundo embaçado pela tontura em suas andanças na busca da sobrevivência na catação de papel, no lixo produzido na cidade de São Paulo.
No final da década de 1980, o artista plástico cearense Descartes Gadelha retratou catadoras e catadores de lixo que disputavam com os urubus, os cães, os ratos e invisíveis seres devoradores de restos orgânicos, os dejetos recolhidos em diferentes pontos da cidade de Fortaleza quando levados ao aterro Sanitário do Jangurussu, em Messejana, num caótico e escatológico banquete em busca da sobrevivência. O aterro incorporava, ao mesmo tempo, a expressão maior da miséria, da degradação, da dor, mas também da esperança que se renovava a cada nova possibilidade de encontrar o alimento possível de manter a vida.
O traço comum a essas imagens da indigência e do sofrimento, é que sobre esses corpos agem dispositivos de gestão necropolítica que lhes impõe uma espécie de morte-em-vida, mórbida estética da cadaverização capaz de produzir profunda instrumentalização da existência humana e aniquilação material de corpos, comunidades e populações. Assim, seguindo os rastros do filósofo camaronês Achille Mbembe, essas pessoas são alvo de uma administração mortífera de seus corpos nas margens periféricas das cidades produzidas pelo capitalismo mais agressivo, sobrevivendo em verdadeiros espaços de exceção marcados pela carência, abandono e permanente vigilância. Mbembe diz ainda que a necropolítica não é exclusividade estatal, transferindo-se cada vez mais, atualmente, para um conjunto heteróclito de grupos armados locais, formações paramilitares, facções criminosas e milícias armadas, empresas privadas de segurança.
Nesses territórios de exceção, as ações das forças do poder que decidem sobre a vida e a morte operam num duplo movimento: de um lado, atuam na produção da morte e definição das vidas passíveis de luto, de outro, imprimem uma progressiva e contínua destruição sobre os corpos ainda vivos. Mobilizando instrumentos herdados das experiências coloniais e do racismo atávico que atravessa nossa formação histórica, tornam populações inteiras alvos privilegiados de uma violência que mutila seus corpos, incapacitando-os, destruindo sua potência produtiva, embotando suas subjetividades.
No limite, resta que é próprio das tecnologias necropolíticas a gestão do sofrimento, prolongando o “morrer” num longo processo de miríades de pequenas mortes, morte que se dá a conta-gotas, que pode encontrar seu fim num trágico golpe fatal, ou arrastar-se ainda mais, mergulhando na fraqueza, na doença, padecendo de “fome um pouco por dia”, como escreveu o poeta pernambucano. Esses muitos Severinos se encarnam, no Brasil de hoje, em milhões de pessoas que enfrentam a fome que as devora, as violências e opressões do dia a dia, o desespero do futuro negado.
REFERÊNCIAS
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2014.
MBEMBE, Joseph-Achille. Necropolítica: biopoder, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina: e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.