“pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem!”
Jesus Cristo.
Historicamente, a política, entendida como formatação de poder e de canal de acesso ao dito cujo, teve forte influência religiosa. Não é rara a associação do poder de mando político a uma unção divina sob a qual tal poder é exercido.
A nossa constituição no seu preâmbulo, começa assim:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático… promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDFERATIVA DO BRASIL.”
O Estado é laico, mas os seus constituintes invocam a proteção de Deus. É a fé monoteísta aquilo que hoje permeia a ação política dos homens, e este é o traço da presença religiosa na nossa sociabilidade laica.
Nos albores do capitalismo, quando se queria separar o Estado monárquico feudal ocidental da influência simbiótica deste com a Igreja Católica Apostólica Romana, filósofos iluministas como Thomas Hobbes e John Locke criticavam, ainda no século 18, as posições reacionárias do fundamentalismo religioso de então dizendo que “o verdadeiro desafio à convivência decorre, no presente, tanto quanto decorria no século 17, do protagonismo público de grupos ou movimentos religiosos radicais, fechados à crítica e infensos ao reconhecimento da pluralidade de convicções”.
As frases iluministas do século 18 estão mais atuais do que nunca e presentes no pensamento democrático burguês em contraponto ao conservadorismo religioso pentecostal reacionário de proposição de uma prosperidade coletiva impossível de ocorrer sob a égide das relações mercantis capitalistas pretensamente tutelada pela proteção divina.
Para os fundamentalistas religiosos tudo que se consegue vem de Deus; as mazelas sociais são artes do demônio que se apodera das mentes pouco crédulas!
Quando Boçalnaro, o iognaro, afirma “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos”, primeiro reafirma o teor nacionalista xenófobo que é a essência do seu militarismo retrógrado (e que se contrapõe ao liberalismo clássico do Paulo Guedes, contradição que convive entre eles por mero apego ao poder de cada um); e em segundo lugar quer passar a impressão de sua benção divina como um messias salvador.
Quando a miséria social se aprofunda no seio das sociedades, mais se aproveitam e se apressam os mercadores da fé em fazer uma leitura bíblica fundamentalista que é repassada aos fiéis sob três eixos básicos:
a) o convencimento dos fiéis de que todos podem prosperar, desde que aceitem a fé ditada naquela igreja específica (agora são milhares as denominações religiosas protestantes);
b) o conservadorismo nos costumes, como prêmio para se ganhar o reino dos Céus;
c) o pagamento do dízimo, parte bem terrena da pretendida salvação na vida espiritual.
O Brasil, que sempre foi o país de maior contingente populacional católico do mundo, sempre foi elitista e conservador, e detém o desastroso título de um dos mais concentradores de renda do mundo ocidental (rivaliza-se com os emirados árabes nesta matéria), viu, de uns anos para cá, o crescimento do pentecostalismo conservador reacionário anticatolicista crescer significativamente, fazendo a riqueza dos dirigentes religiosos e seus tentáculos nacionais (e alguns já internacionais).
Mas a proporção do empobrecimento populacional brasileiro na última década é inversamente proporcional ao crescimento da riqueza de muitos pastores, bem como ao crescimento do número de fiéis e das denominações religiosas que também abrem suas portas numa proporção inversa aos fechamentos de lojas e estabelecimentos comerciais capitalistas.
A miséria social é campo fértil para a proposição e aceitação por parte de incautas vítimas sociais tanto da promessa (vã) de prosperidade, como da
aceitação da orientação política patrocinada pela maioria dos pastores evangélicos que se associam politicamente aos seus delegados políticos (quando não são eles próprios os protagonistas da cena política) para a dominação política do Estado laico. Neste cenário a política é tão presente quanto a doutrinação religiosa fundamentalista.
Não é por menos que temos no Congresso Nacional uma bancada evangélica constituindo-se como um partido político religioso unificado sob várias siglas político-partidárias.
Nas outras instituições do poder do Estado também ocorre tal iniciativa, de modo a que são nomeados ministros para o Supremo Tribunal Federal em razão de serem terrivelmente evangélicos, e não como magistrados cuja isenção deveria ser condição inafastável para o ato de julgar.
Vivemos um retrocesso social no Brasil (fenômeno que se observa mundo afora) que prospera pari passo ao aprofundamento de miséria social, como se houvesse (e há) uma direta correlação entre uma coisa e outra.
As pesquisas de opinião pública estão a demonstrar a preferência eleitoral dos fiéis evangélicos ao candidato a Presidente da República batizado no Rio Jordão pelo pastor Everaldo (aquele que foi preso por corrupção) e que nomeou um pastor como Ministro da Educação (aquele defensor da teologia da discriminação e viajava armado, mas foi preso por dirigir as já reduzidas verbas da educação sem a devida justificativa aos seus cumpliciados evangélicos (tal como havia feito e ex-Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella).
Para a elite brasileira e para as lideranças religiosas pentecostais não importa o fato de Boçalnaro, o ignaro, sentir que “pintou um clima” entre ele e jovens adolescentes venezuelanas refugiadas (reproduzindo conteúdo sexista desde quando era Deputado Federal e disse em discurso a uma colega que não a estupraria por ser feia);
– não importa ter virado as costas à compra de vacinas (e até hoje não ser vacinado) num momento em que o mundo todo disputava a compra das ditas cujas como forma de evitar mortes e a propagação do vírus, hoje significativamente contida (mas adoram condenar as mães solos de uma gravidez indesejada por fazer o aborto em condições precárias, que muitas vezes matam ela mesma e o feto);
– não importa que a CPI da covid tenha denunciado a tentativa de corrupção no Ministério das Saúde na compra de vacinas na base do “por fora” de US$ 1,00 por dose;
– não importa ter esvaziado verbas para a educação, depois de ter nomeado cinco ministros periodicamente afastados por incompetência ou corrupção (ou as duas coisas juntas);
– não importa que alguém tenha um histórico de associação de frases machistas e misóginas repetidamente dirigida às mulheres, como se o interior dos seus conceitos e sentimentos aflorassem aqui e acolá de modo repetido e precipitadamente incontido como reflexo da sua própria verdade interior;
– não importa o nepotismo familiar (como a nomeação absurda para embaixador do Brasil nos Estados Unidos de um filho despreparado para o cargo (ato felizmente contido pela opinião pública clamorosa) e a corrupção evidenciada na compra em dinheiro vivo de imóveis no valor de R$ 51 milhões;
– não importa o desmantelamento de todos os órgãos ambientais, culturais, de combate ao racismo e de combate à dissociação de gênero;
– não importa as inúmeras ameaças de autogolpe e de fechamento das instituições de poder democrático burguês para substituí-las por mecanismos totalitários e intolerantes próprios aos arbítrios de quem se sente ungido por Deus para governar por tempo indefinido;
– não importa as reiteradas mentiras logo desmascaradas como aquelas de se dizer um outsider da política, mas colocar os filhos e ex-mulheres na vida política e, por fim, retirar a máscara e se subjugar aos parlamentares do centrão (e até confessado, sem pejo, ter integrado tal asqueroso bloco parlamentar), promovendo um expediente obscuro como o tal “orçamento secreto” que nada mais é do que a prática da maior corrupção oficial já experimentada no Brasil (e quiçá no mundo);
“Nada importa! O que importa é que o candidato sirva aos nossos propósitos retrógrados e interesses mesquinhos”. Assim, pensam e agem os reacionários sociais e religiosos fundamentalistas.
Divididos entre fanáticos religiosos fundamentalistas; neófitos religiosos; e dirigentes pastorais manipuladores e adeptos da teologia do oportunismo político-econômico diante da miséria alheia, vivemos a tentativa de imposição de um retrocesso às trevas da idade média.
Podemos, portanto, citar Belchior, quando diz: “mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem!”
Em contraponto, temos a esperança de que tal como uma Fênix ressurgindo das cinzas, possamos dar o salto qualitativo necessário para a concepção do novo, livre das amarras de um passado e presente escravistas.
Fora os vendilhões do templo, da mesma forma como fez Jesus Cristo firme e aborrecido.
Viva a emancipação humana!
Dalton Rosado.